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segunda-feira, março 26, 2007

Lamento de Orfeu


Quero chegar à ideia, tocar o seu corpo
abstracto, e sentir na sua pele as palavras que compõem
a frase musical do espírito. Para isso, o meu olhar
procura o campo das sensações, percorre-o com
a lâmina acerada da sua luz, e recorta de entre
o magma dos sentimentos a figura exacta
do amor. Tenho de encontrar a pura expressão
do som, o mais alto acorde de entre os que envolvem
a sua voz, e pedir aos deuses que me emprestem
um vocabulário de nuvens, para que a sua névoa
desça ao fundo dos meus olhos, e obscureça
a linha da razão. A cegueira da alma restituir-me-á
a visão que só os dedos pressentem, quando
te encontram; e voltarei a ver, por entre
as sombras, o rosto amado.

sexta-feira, março 23, 2007

No campo





No campo, onde as mulheres cuidavam das coisas
da casa, peneiravam a farinha com que se faz
o pão, falavam da vida umas das outras, e
era como se ninguém as ouvisse, tudo o
que diziam se sabia. Não era o que se sabia
que elas diziam, mas no que elas diziam
estava o que se descobria que se sabia, como
se as suas palavras tirassem da cabeça de
quem as ouvia o que sempre ali estivera,
sem se saber o que estava. Elas falavam
como se não importasse o que diziam; e
as suas palavras passavam pela peneira
do tempo, e cresciam como a massa que
punham no forno, para fazer o pão que se
havia de comer, durante a semana, enquanto
as suas frases fermentavam na cabeça de
quem as guardava, sem saber que no que elas
diziam estavam as vidas que contavam

Um rosto

Quantos séculos passaram pelos
teus olhos? Quis contá-los; mas não consegui
passar do princípio que os teus dedos
me deram, fechados para somas
e subtracções. O tempo é assim: doce
como este mel que escorre da tua boca,
quando nela procuro as palavras
que esconde; e amargo como a penumbra
que te envolve, numa celebração
de cinza. Mas dizias-me: «Uma certeza
protege-me.» E deixas-me a luz que te
ilumina, e o rosto a que nenhum inverno
roubou a beleza.

domingo, março 04, 2007

Noite de viagem

Amei a tua inquietação; e disseste-me que
te amei sem saber porquê, que as marés anunciavam
o luar que não chegou, que não foi preciso
olhar o fundo transparente das palavras
para que a sua verdade nos tocasse, que a tua mão
colheu o fruto da primeira árvore sem que nada
o impedisse.

Amei-te sem ter a certeza da manhã, sem ouvir
o vento que fez bater as janelas num eco do passado,
sem correr as cortinas do mundo para que
ninguém nos visse, sem apagar do teu rosto
o brilho da vida, enquanto as aves dormiam,
e o licor do sonho se derramava sobre os corpos
que cortavam a noite.

Mas ao seguir o seu rumo, o azul
floresceu das cinzas, a música despontou
dos silêncios da madrugada, e os teus olhos
amanheceram quando me disseste que
te amei, sem saber porquê.

sábado, março 03, 2007

Canto

Uma noite cai contra a luz,
e os cimos que o sonho anunciava desfazem-se
no fundo do vale onde os deuses se deitam,
como animais doentes. Mas nenhum rio
interrompe o seu curso; e a primavera
fez sair da terra as primeiras flores,
pintando de amarelo o verde
dos campos. No entanto, o sabor da treva
permanece na alma, com a sua inteira
amargura; e um eco de aves sombrias
escurece o que dizes, como se as palavras
húmidas do canto tivessem secado
os teus lábios.