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sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Desembarque


E depois vieram as ondas, com a sua
imprecisão de espuma, desenhando o perfil
branco do horizonte contra a sombra
do farol.

E depois vieram os barcos, com as
suas tripulações de mortos, desembarcando
os marinheiros que dormiam num eco
de porões.

E depois vieram os homens que encheram
o molhe, espreitando para dentro de uma
memória de viagens, em busca de um porto
esquecido.

Por que não rebentaram estas ondas? Por
que não naufragaram estes barcos? Por
que não ficaram estes homens num canto
das suas casas?

Cubro-os com o nevoeiro do poema, deixando
que o farol solte o seu uivo sobre o ruído das
ondas, a calma dos convés, o silêncio
dos homens.

domingo, fevereiro 24, 2008

Romanceiro apócrifo



Traz notícias a pomba negra, notícias do laranjal,
tem no bico uma coroa, negra prata tem na asa.
- «Que me dizes negra pomba, que significa teu sinal,
tuas novas não nas quero, como fossem ferro em brasa.»
- O que digo é só isso caro e bom ermitão,
na funda cova em que estás, dorme e reza penitente.»
- ««Durmo e sonho nesta cova, nesta funda escuridão,
rezo e choro nesta terra, com a noite pela frente.»
Vai pelos ares a pomba, vai e ninguém a vê,
nem o que disse se ouve, nem o que ouviu alguém recorda.
Se no céu a avistarem, não a chamem por mercê,
ao pousar a terra adormece, em voando um deus acorda.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Romanceiro apócrifo


Andava silvana num corredor de ouro
tocando a viola que o pajem guardava.
Ninguém a ouvia, nem cristão nem mouro,
só o pajem a seguia por onde ela andava.
- «Não toques mais silvana, é de prata a viola,
foi um diabo que a fez, outro diabo a afinou.»
- «Não te cales ó pajem, é esta música uma esmola,
foi um diabo que a deu, outro diabo a cantou.»
A caminho do inferno perdeu-se a silvana,
não a encontra o pajem, não sabe por onde vai.
Sobe à janela o pajem, espreita pela ventana,
sobe tão alto que não desce, quando desce é porque cai.
Morre o pajem neste chão, dele cresce um silvado,
senta-se silvana junto dele, sem saber onde está.
E quando o vento se levanta, de um e outro lado,
faz ouvir o que ele dizia, para que ela chore ali já.
- «Um diabo o trouxe, e outro o levou,
uma mãe o pariu, e outra o enterrou.»
E sete anos espera silvana, perdida nesse arbusto,
sem mal que não lhe chegue, e bem que não tenha custo.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Romanceiro apócrifo



Que faz a bela infanta do seu cabelo despenteado?

Passam os caçadores com os cães açaimados,

correm os cavaleiros com o rei ao seu lado;

e não os vê a infanta, nem lhes ouve os seus brados.

Podia já ser dia e fazer ela a sua vontade,

mas no quarto onde está é sempre noite escura.

Voltam os caçadores trazendo a sua metade,

sobe o rei ao trono com a sua lei mais dura.

Não adormece a infanta nem acorda do sono.

Um cavaleiro perdeu-se na volta do caminho,

cruzou-se com o mendigo na terra do abandono,

comem juntos o pão, bebem ambos o mesmo vinho.

Canta a bela infanta um romance esquecido.

Sobe à torre o cavaleiro, fecha-lhe a porta o mendigo,

não mais dali sairá que a chave tem perdido,

para sempre ali ficou fechado só consigo.

Cavalga longe a infanta como se o fosse procurar.

Passa-lhe o mendigo à porta, ninguém o vem receber,

não ouves bela infanta que já te estou a chamar,

vem abrir-me a porta, ouvir o que te vou dizer.

Nem a infanta o ouve, nem está vivo o cavaleiro.

Com a esmola de uns cabelos foi-se o mendigo embora,

ninguém ouviu o que dizia, ficou mudo o mensageiro,

chama-se hoje àquela torre a velha torre da má hora.




terça-feira, fevereiro 19, 2008

Romanceiro apócrifo

Aqui está a nau catrineta que à praia veio dar;
traz na proa um cometa para a noite iluminar.
Não foi um ano nem um dia que andou neste mar,
um ano esteve parada, só num dia foi navegar.
Como foi ao fundo conta quem sabe,
tinha peso a mais, grita o capitão Achab.
Jogam uns às cartas, tira outro a má sorte;
apanhou-a o temporal, foi ter com ela a morte.
Mas o mar não foi tão fundo que nele se afundasse,
foi dar o casco à praia, para que alguém a encontrasse.
Uma menina deu com ela, com o barquinho real,
outra menina a segurou, e a prendeu afinal.
Apodrece agora esta nau, sem ter mastros nem ter velas,
e são estas meninas as suas últimas sentinelas.
Já nem riem nem choram as meninas de além-mar,
desenham barcos na areia, só o que sabem é desenhar.
Veio o diabo ao seu encontro para com elas atentar,
dizem-lhe elas vai-te embora, te queremos arrenegar.
Foge o diabo como da cruz, leva com ele o temporal,
e nesta areia o que fica são as naus de Portugal.

sábado, fevereiro 16, 2008

Conversa de campo


Por quem esperam? Que
caminho vão seguir? Numa rua
de terra batida, num dia
de outro século, numa tarde
há muito esquecida?

Os homens só têm tempo
para ficar parados, ouvindo
os ruídos do campo, uma
voz que vem não sabem de
onde, um eco de grito.

Mas que dizem um ao
outro? De que negócios
tratam? Em que feira perderam
uma agenda de solidões? Falam
apenas, e não têm sombra.

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Conversa de praia


Ainda não era o verão, nem se ouviam
as cigarras no meio das dunas, nem o mar tinha
o azul habitual num céu sem nuvens. As
mulheres falavam do verão que havia de chegar;
e a sua voz trazia um eco dos ruídos que
enchiam o verão, como se elas fossem as deusas
que decidem a mudança das estações, ou
as suas palavras ditassem a certeza do tempo
que passa por sobre elas. Mas o vento
leva o que dizem numa outra direcção; e
não as ouço, como se o que elas dizem se perdesse
na paisagem de dunas em que o mar se
esconde. Mas o que o vento leva
voltará, um dia, quando o sol limpar a areia
das dunas, e as suas palavras surgirem
por entre conchas e pedras, para que
o ruído das cigarras as esconda na paisagem
em que o mar se vê.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Retrato paradoxal


Era um retrato na parede. Era
uma parede num retrato. Pus
o retrato na parede. Pus a parede
no retrato. Para o retrato não
ficar sem parede, tirei o retrato
na parede. Para a parede não ficar
sem retrato, dei um retrato
à parede. E com o retrato na parede,
a parede ficou sem retrato.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Mudança


Nestes subúrbios tem-se a impressão
de que a vida está do outro lado da estrada;
e quem olha para o que está do outro lado,
vê o reflexo do que iria viver se pudesse
atravessar a estrada.

Porém, estas estradas não se atravessam; e
quem está do outro lado, e olha para
este lado da estrada, vê que alguém o espera,
sem que alguma vez se possam encontrar
num ou noutro lado da estrada.

Assim, se alguém atravessar a estrada sem
olhar para o que deixa para trás, e para o que vai
encontrar pela frente, talvez descubra que
não basta atravessar uma estrada
para sair dos subúrbios.

E ao chegar ao outro lado, e ver
onde está, pode ser que descubra que
um e outro lado da estrada, quando
se olha para trás, são o mesmo onde
alguém, um dia, pensa atravessar a estrada.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Viagem marítima


O barco que nos espera não está
no fim nem no princípio do mar. Temos
de passar a primeira onda, e de subir
depressa, antes que uma outra chegue;
depois, é preciso ver se há remos. E se
não houver, teremos de confiar no
vento, para que ele nos leve para o mar
sem ventos nem ondas. Mas antes disso, há
uma âncora que se tem de puxar; e
se ela não couber no barco, pode-se atirá-la
à água: no mar para onde vamos não
é preciso âncoras. Também não
precisamos de barcos. E também não
precisamos de remos. No mar do fim do
mundo, a água é parada, e pode-se andar
por cima dela, fugindo ao cão que nos
empurra para terra. Então, pensam
uns, a âncora poderia servir para amarrar
o pescoço do cão, e obrigá-lo a estar
parado. Mas o dono do cão deita a sua rede
para apanhar os que querem voltar ao
largo, como se pudessem sentir de novo
o vento e as ondas. E quando chega a terra,
para esvaziar a rede, não perde tempo
a contar a sua pesca. Por isso, há quem
não olhe para o barco, como se ele não
estivesse lá, e espere pela manhã seguinte,
enquanto outros tomam o seu lugar.