Uma arte reflexiva
Tal como o pintor copia a natureza, o espelho
serve-se do que existe no mundo em que o puseram
para traduzir a realidade. Ao vê-la, no seu quadro
efémero, tem-se a impressão de que pode ser
um retrato, capaz de durar para além do instante
em que a mulher atravessa o quarto, de frente
para a mulher que a olha, enquanto bebe o chá;
e as frases que trocam perdem-se no espaço
entre elas e o tempo em que viveram. Mas
o movimento que a moldura fecha, enquanto
ela não sai do campo de visão, para se vestir,
é o suficente para denunciar que tudo se resume
a um instante, e que em breve um rosto voltará
para se olhar ao espelho, pentear-se, e retocar
a pintura. A natureza das coisas é tão simples
como isto; e quando o espelho ficar vazio, o que
importa é o jarro e a bacia onde há muito
secou a água com que ela lavou os olhos, cansados
da noite, deixando a sombra das suas mãos
confundir-se com o eco das vozes que a vida levou.
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