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domingo, agosto 24, 2008

Luta de classes: O quarto poder


Na primeira hipótese, há uma causa
que obriga a multidão a avançar pela rua,
sabendo o que tem pela frente. As suas vozes
esperam que alguém as acorde com uma fórmula
que dê sentido ao seu movimento; mas
nem isso é preciso, quando olhamos o conjunto
e encontramos uma lógica que
determina cada passo.
Na segunda hipótese, a expressão do rosto
transporta uma decisão que ultrapassa o objectivo
do grupo. Poderia falar-se de uma metafísica
colectiva, e recorrer à dialéctica do Hegel para
descobrir esta violência serena que antecede
o grande combate que o filósofo descreveu como
simples antítese. A abstracção do raciocíonio
liberta-nos da realidade.
O que não vemos é o que está à sua
frente, e nunca tem rosto. A devastação
do mundo é, no fundo das coisas, a terceira
hipótese, mesmo quando uma planta ainda nasce
no terreiro vazio, depois da batalha.

sexta-feira, agosto 22, 2008

Domingo no campo


Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

terça-feira, agosto 19, 2008

Luta de classes: Movimento de massas


Na sua definição de um movimento de massas,
marx não viu a individualidade do sujeito, nem
a sua realidade única, como se a pessoa não fosse mais
do que uma peça no conjunto que poderia viver
sem ela, substituindo-a quando fosse preciso. Mas
ao olhar os rostos que fazem parte da multidão,
encontro as diferenças que nascem de cada vida, com
aquilo que as distingue, do nascimento à morte. Dentro
do grupo, porém, essas diferenças esbatem-se: e
se a multidão é a tese, cada um desses corpos
representa uma antítese que leva consigo
o problema que a dialéctica não resolve: dramas
e alegrias que não existem para além deles,
e que ouço quando me aproximo de cada rosto,
como se a tese nascesse de uma surpresa nos olhos,
ou na inesperada confidência de um sentimento. Mas
marx não precisava de saber o que havia na cabeça
de cada um para definir o pensamento colectivo;
e a revolução rolou pelos impérios, levando atrás
dela os destinos de que nada sabemos.

segunda-feira, agosto 18, 2008

Luta de classes: O campesinato

A chave do campo está na mão das mulheres
que o lavraram, desfazendo os nós do inverno
com a exactidão da pá. Vi estas mulheres no
grande caminho da História, perdendo as suas
vidas em cada nova colheita. O sol tisnou
a sua pele; o frio enrugou os seus rostos. À
noite, quando o vento batia nas janelas
de madeira, os seus olhos atravessavam
a treva e perdiam-se em destinos que
não conheciam, como se tivessem outra
saída. Ouvi as suas queixas no murmúrio
das árvores que as abrigaram; e vi os
seus corpos deitados nas igrejas, sem
ninguém que os velasse, a caminho da vala
comum. Amei-as, sem que o soubessem;
e ouço o ruído das pás na terra, quando os
seus rostos me atravessam a memória,
e o inverno cai sobre a lama dos campos.

domingo, agosto 17, 2008

Paradoxo natural


Na luz indecisa que deixa adivinhar
a manhã, a névoa que impregna o ar
desfaz-se quando os dedos de fogo do sol
a limpam, restituindo ao dia
a sua transparência. Mas a mulher que
ocupa o centro da paisagem não
se apercebe da mudança. O seu corpo
pertence à terra, e entrega-se
ao ritmo subterrâneo das raízes, ouvindo
o canto que regula a passagem
das estações. Um desejo de sombra apodera-se
da sua alma; e conta o tempo que falta
para a noite, para se entregar ao silêncio
do mundo, no lento eclipse
dos sentimentos.

sábado, agosto 16, 2008

Zoologia marinha


As coisas limitam-se a ser o que são
quando as olhamos de frente, como esse cão
que enfrentou o céu e não teve resposta.

Outras coisas são mais simples do que
pensamos, quando as definimos entre o
que são e o que não sabemos delas.

O cão perdido no areal pode ser uma dessas
coisas, quando transforma as ondas na
sua matilha, e elas vão atrás dele.

Como se as ondas fossem animais,
e o mar respirasse pelas suas bocas
quando perseguem o cão que as espera.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Tempo fluvial

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.