Natureza morta com rédea e freio
Que lábios tocaram naquele copo, pergunto-me; e
sei que não foram, sem dúvida, os de Jan Simonsz Van de Beeck,
mais conhecido pelo nome de Torrentius (sobretudo
depois da sua condenação). Há uma transparência no vidro
que me faz pensar que foi usado uma única vez,
para reflectir a luz da janela que também surge
em cada um dos recipientes que o rodeiam; e
a folha de papel sobre a qual assenta a sua base,
com partição e texto, sugere um bom conhecimento
de música. Tudo ali surge com uma nitidez
tão exacta que nos poderia levar a espreitar, através
do copo, a parede - e ver a rédea e o freio que serviram
ao amigo de Torrentius, o farmacêutico Jeronimus Cornelisz,
a dominar os náufragos do Batavia, que se afundou
nos recifes de uma ilha perdida nos confins da Austrália.
Mas Cornelisz aproveitou o seu poder para seduzir
a jovem Lucrécia Van der Miljen; e também não sei
se partilharam um copo tão transparente como aquele em que
Torrentius não chegou a tocar. Por fim,
a música: é o que fica de tudo o que vemos. O resto -
heresias, viagens, massacres e condenações - perdeu-se
no tumulto das histórias. E resta-me pegar neste copo,
enchê-lo com o licor frio das tempestades,
e esvaziá-lo, devagar, enquanto um cavalo sem rédea
nem freio atravessa o horizonte.
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