A a Z

sábado, setembro 30, 2006

Amanhecer

Ouço bater o teu coração nesta manhã
em que uma luz de argila constrói o busto
do tempo, que um dia descobrirás dentro
de ti, e onde irás reconhecer um rosto
outrora amado. Mas não esperes; o dia de hoje é
o dia que desejas, e não é todas as manhãs
que esta luz te abraça com o seu fulgor
de ave, convidando-te a partir até ao fim
da terra. Não precisas de levar contigo
mais do que o sorriso que se abriu
no instante em que o sol nasceu; e
poderás enchê-lo com as palavras que
tantas vezes esboçaste, sem as dizer,
e agora fazem parte dos teus lábios
como a flor, que pertencia ao caule de onde
a cortei, para a deixar na mesa
que ficará vazia.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Tarde de espera

É possível que a tua atitude se resuma
a um desejo de alguém que há-de vir; talvez esperes
que toquem à porta, ou que os passos no corredor
façam com que te levantes, e um sorriso se abra
no teu rosto. O que é possível faz parte da vida,
quando te sentas, sem saber o que fazer, e só
os pensamentos te ocupam, nesse tempo que
perdes para ganhar todo o tempo do mundo. Mas
se ninguém chegar, se a casa estiver tão
silenciosa como quando te sentaste, se
a rua estiver tão deserta que nem vale a pena
ir à janela, e espreitar a última esquina,
não desesperes. O que hoje parece soar a vazio,
a solidão que entra pela sala com a luz
da tarde, o brilho estéril dos teus olhos,
tudo se dissipará quando a manhã futura
entrar na tua vida, e as tuas mãos
tocarem o murmúrio transparente
da primavera, jorrando como água
dos lábios que se aproximam
dos teus, e os acordam
para o amor.

terça-feira, setembro 26, 2006

Leitura interrompida


No meio das coisas, com o sentimento certo
de que amanhã é um espaço entre o centro
e o cume, desenhando apenas a linha de
prumo do sol que há-de nascer, espreito
por cima do teu ombro a página em que
ficaste, e te fez pensar. Que sonhos nasce-
ram por entre as palavras, que imagem
ou nuvem te passou pelos olhos, e te
levou com ela, até ao limite de um puro
relâmpago? Desfaz com as tuas mãos a
tapeçaria do segredo; e espreita o que
vai surgindo por entre os fios, e traz
o que parecia ter passado, e morrido
com o tempo. Não te distraias com o
pensamento; e volta a página, para
saberes o que vem a seguir. Mas se
não o fizeres, e se uma respiração
antiga te fizer murmurar de novo
as frases do amor, fecha o livro, como
se já soubesses o que vai acontecer.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Decassílabo

Quando a poesia tem o teu rosto,
e o verso coincide com o número
dos teus dedos, volto a contar a métrica
pelo silêncio duns lábios fechados.

Sinto em cada sílaba a tua pele,
ouço em cada rima um canto de amor;
e se a conta não acerta no fim,
volto à tabuada que me ensinaste.

Ponho o singular do corpo na mesa,
tiro o plural dos olhos do caderno;
divido pelos ombros os cabelos,
somo aos seios o véu que os encobre.

sábado, setembro 23, 2006

Rosto

Bouguereau
Desenho no teu rosto as linhas
de uma lua límpida; e peço-te
que me deixes ver a outra face,
onde a luz obscura dos astros
cai como sombra de rosa.

Mas prendes os cabelos num
rebordo de nuvem; e a rotação
da terra coincide com a direcção
dos teus olhos, para que nos
encontremos na órbita do amor.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Génese

Edouard Boubat



Desfaço nos olhos o azul do céu, e
deito-o na página, com um brilho de manhã
à mistura. As palavras cintilam, numa
breve alquimia de luz. Depois, voltam
ao primeiro significado, mas o que leio
é já outra coisa. O azul fica envolto
numa espuma de oceano; a manhã
tem a frescura do fruto que se acabou
de colher; a página estende-se até
ao fim da imaginação, onde outros
continentes se abrem. E o rosto que
nela se imprime tem a tua cor, a tua
pele, o vermelho dos teus lábios,
o mármore divino do dia que nasce
quando, nos olhos, desfaço
o azul do céu.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Epigrama gastronómico

Há mil e cem anos
de poesia num só dia,
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha

- quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.

sábado, setembro 16, 2006

Diálogo


«Posso beber o amor pelo copo dos teus
lábios?» O disco chega ao fim; um ruído de rua
entra pela janela; não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa. Mas o mundo
não interfere no equilíbrio frágil
das nossas vidas. Este copo não se esvazia; e
os teus olhos levam-me à fronteira
do sonho, para que a passe, e entre
contigo num país de nuvem. O meu passaporte
são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo. «Por
isso me perco», dizes. «Por isso te
encontro», respondo. E a noite que
nos separa é o dia que nos reúne.

Regresso de viagem



















Depois de algum tempo fora, abri o correio
e tirei o mar de dentro da caixa. As algas
acumulavam-se por entre cartas e publicidade;
e uma onda rebentou nas minhas mãos quando
separei a água e o céu, e a linha do horizonte
me apareceu sob uma espuma de pássaros.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Em busca da beleza


Ao prender os cabelos, olhando para o fundo
do espaço, numa direcção abstracta e vaga,
a vida dissipa-se na sua cabeça, como se entre
ontem e amanhã nada acontecesse. O seu rosto
concentra-se no presente, e na imagem que
procura constrói essa ilusão de eternidade
que a firmeza dos braços capta, como se
a pudesse manter intacta para além do
instante que vive. No entanto, é aí que a
encontro, com as certezas que em breve
se irão desfazer, e o gesto de desafio de
quem sabe que a beleza a possui, por algum
tempo, enquanto o inverno não chega.