A a Z

sábado, maio 24, 2008

Retrato antigo

Num retrato de infância, encontro
os rostos das mulheres que fazem parte
da casa. Uma ciência secreta escorre
dos seus olhos, e os pratos da fruta
acabada de colher amontoam-se
na memória. Não sei como se chamam;
nem as reconheço quando a luz do passado,
que entra pela janela, ilumina
a sua melancolia. Mas lembro-me
das suas mãos que construíam
o tempo numa inércia de conversas; e
ouço a música das estações que
se sobrepôs às suas vidas e as levou,
uma após outra, como as últimas folhas
do outono.

quinta-feira, maio 22, 2008

Estrutura branca

Há uma regra de atracção que decorre
do modo como as forças estão ligadas
uma à outra, e o equilíbrio do sistema
assenta nos vértices superior e
inferior do quadro. O olhar dirige-se
para o meio, onde nada existe; e
na linha que se forma é possível
verificar uma ligação entre os
dois extremos de um eixo que
faz rodar o pensamento em torno
deste desejo de eliminar o espaço
vazio a que tudo se reduz. Mas
a mão parece segurar esse fio, como
um caule, e a flor surge de dentro
da imagem, trazendo a emoção
breve de uma cor que a noite apaga.

Leitura

Um sol apodrece nas folhas do álbum
quando o folheias, e o outono regressa
por entre os teus dedos, como água que
escorre ou luz que se desvanece.

No entanto, dizes, o passado não é
sombrio como as palavras que o descrevem;
nem a música que ouço nos ouvidos
da alma traz a melancolia da tarde.

Então, peço-te, fecha esse livro; e
limita-te a olhar em frente, onde uma
porta se abre e o tempo que esperas
entra pela casa, com o sol da manhã.

Cais

Um navio parte, para onde
não se sabe; e outro chega, de onde
não se sabe. É onde se está, no chão
que se pisa, que a terra oferece
um centro a quem não tem
para onde ir. Porém, quando
um braço acena ao navio que parte,
é como se não houvesse cais
nem destino. O centro desloca-se
para o fundo do horizonte,
e é como se o vento do largo
empurrasse o corpo para onde
não se sabe, como se não
tivesse onde ficar.

sábado, maio 17, 2008

Fotografia de parede

Carlos Relvas
Na parede, as velhas fotografias são
como os epitáfios que o tempo apaga
numa antiga alameda de cemitério. No
entanto, os rostos conservam algo
de uma vida que não se perde; e
sigo a direcção dos olhos, até me
fixar no enigma dessa frase que
os lábios fechados nunca disseram.

segunda-feira, maio 12, 2008

A inocência original


Debaixo do céu,
uma eva; debaixo de uma eva,
um adão; debaixo de adão,
a terra; dentro da terra,
uma semente; debaixo da semente,
uma pedra; debaixo dessa pedra,
uma serpente.

E da semente
que eva pisou quando adão
saiu debaixo dela nasceu
uma árvore, cuja raiz acordou
a serpente, que se lembrou
de pôr adão e eva debaixo da árvore
para que descobrissem a tentação
de cada vez que viam a maçã
em cima deles.

Mas como no paraíso terrestre
não existia a lei da gravidade,
nunca chegaram ao ramo onde
estava a maçã porque o amor
os deixava sem forças
para se levantarem.

quarta-feira, maio 07, 2008

Equação

Conto os meus sonhos com a tábua
de calcular. Cada um deles é uma equação
diferente. Mas o resultado é só um:
a soma dos dias em que acordo.

segunda-feira, maio 05, 2008

Uma lógica caseira

Por dentro destas casas as casas,
e nas casas crescem outras casas como árvores
nascidas das casas. Em cada casa
as portas das casas são como as portas
de outras casas, abrindo as árvores
a quem entra nas casas. O branco das casas
não é o verde das árvores, mas
quando as casas se transformam em árvores
o branco faz verde o campo e
as árvores ficam brancas como as casas. As folhas
caem das árvores quando as telhas caem
dos telhados; e em vez das telhas as folhas,
em vez das folhas as telhas. As casas sem telhas
ficam com as grandes copas verdes das árvores;
e sobre as árvores sem folhas o céu é
um telhado onde as aves fazem ninhos,
confundindo nuvens com beirais. E
quando chove, as nuvens ficam verdes,
enchendo a casa de branco e as árvores
de aves, como devia ser desde o princípio.