A a Z

quarta-feira, julho 23, 2008

Metamorfose fluvial


Estas são as mulheres, levando
nas mãos os castiçais de fogo da sua manhã,
subindo uma escada de silêncio para dentro
das casas de onde vieram, empurrando
as portas dos rios mais fundos para entrarem
nos palácios do abismo, e os iluminarem
com as lâmpadas nuas dos seus corpos. Ouço
as suas vozes crescerem no interior
dos montes, num fulgor amarelo de flores
vagarosas como as mãos que nascem
dos seus braços. Estas mulheres são imensas
como as nuvens que atravessam a paisagem,
e escrevem na página do céu o nome
dos deuses que as amaram, transformando-as
em árvores, em astros, em animais
incalculáveis num prado breve como
a sua eternidade. Dizem-me que as suas vozes
são roucas, que os seus cabelos cobrem
os arvoredos do horizonte, que os seus dedos
contam os amantes na exaustão da madrugada. E
empurro-as para o corredor da memória,
para que se percam numa vociferação de sombras,
como se não soubessem o caminho do átrio
onde as espero, e não viessem tapadas
por um manto de orvalho, gota a gota escorrendo
dos seus lábios.

sexta-feira, julho 18, 2008

Olaria


No lençol do campo, o corpo procura
a terra macia que renasce da memória
insone. Não ouve os pássaros, nem
se oferece a um sol proscrito do seu
rosto. Morde a maçã do instante
no ofício do desejo, matando a sede
que lhe secou os lábios. E o dia sobe
nos seus dedos, como o barro, para
que deles surja a figura do amor.

quinta-feira, julho 17, 2008

Rimas soltas


Não sei dizer o que é o amor
nos passados onde o amor se cansa,
sentido e vivido, colhido em ramo ou em flor,
o que ele canta sobra ainda nesta dança.

Podia estendê-lo na frase sem sujeito,
fazer dele um advérbio, cabelo sem trança,
vê-lo descer como rio sobre o peito,
inundar o corpo na manhã que avança.

Deixá-lo ficar nos olhos sem destino,
tê-lo amarrado ao desejo que esconde.
E persegui-lo quando parece mais longe,

trazê-lo aqui mais perto, vê-lo pequenino.
O amor voa sem ter de subir ao céu,
encobre o rosto quando fica sem véu.

segunda-feira, julho 07, 2008

Fragmento de ode



Nas cartas que se escrevem e não
chegam ao destino, o que ficou dito
tem o eco do que nunca será
esquecido: a voz que se ouviu numa
paragem do tempo, e atravessa
o centro da memória numa inquieta
procissão de sombras.
Pudessem os arcos do horizonte
abrir-se como um lamento de pombas;
ou este sonho fechar-se com o correr
da cortina de um último acto: nunca
os dedos amados irão soletrar
a frase do crepúsculo, soltando
da sua música um enxame de sílabas.
E o azul enche a garrafa do céu
para que as aves se embriaguem
no púlpito do infinito, arrastando
no seu voo uma cinza de imagens.

sábado, julho 05, 2008

Leitura fria


Um diadema de sílabas
sobre o rosto, e a nua
enunciação das pálpebras. Abro
a página; e um jorro de estames
cobre as sílabas. Mas a dor consome
os dedos que percorrem
o livro. Uma voz
emerge de cada parágrafo,
soletrando o tempo. Assim,
é como se o silêncio se
substituísse às palavras, e
o corpo pousasse num chão
de versos. Por fim,
o vento do ser abranda
num estuário de emoções. E os olhos
avançam até ao fim do poema.