A a Z

domingo, dezembro 30, 2007

Sonho


É uma quietação que nasce da tarde, com
as imagens que arrumo na prateleira do outono,
de onde as irei tirar nessa primavera que faz parte
do teu sonho. De novo, estabeleço uma relação
entre o rosto que se afasta do mundo e
o azul de um céu antigo, que serve
para guardar a linha do horizonte nas manhãs
em que a névoa a esconde. Ambos me afastam
da penumbra do poema, e quando derramo
esse azul sobre o teu rosto é como se a tinta
do céu te restituísse a cor da vida, e o riso
que ilumina a noite. Regresso então ao princípio,
que és tu, para roubar à tarde a sua quietação,
e desenhar com ela o teu perfil sobre o sonho
em que a primavera floresce.

Fragmentos

1
Um ano passou; mas ela pensa
no próximo, sabendo que, daí a um ano,
outro ano terá passado, para que ela
volte a pensar no próximo.
2
O cão não sai do seu colo
para não ter de a obrigar a pensar
na solidão que sentiria se o
cão levasse a sua alma
para a rua.
3
O papagaio espera que ela
diga a palavra que ele irá repetir; mas
ela prefere o silêncio, e o papagaio
obedece-lhe, repetindo
o seu silêncio.
4
A guitarra espera por alguém
que não chegará. E a sua música
solta-se dos dedos de ninguém,
fazendo-a sorrir, como se a música
nascesse de nada.

O leque


Abana-se com o leque do poema; e
um vento de palavras roça-lhe o rosto,
deixando nele impressas as sílabas
do amor.

sábado, dezembro 29, 2007

Cena rústica


Ao fundo, o céu cobre-se com o cinzento
de nuvens que estão para ficar. De costas
para ele, a pastora ignora
esse inverno tão abstracto como a
música que não ouve, as palavras que
não diz, o gado que a sua distracção
tresmalhou. E deixa-se ficar no centro
do campo, com o vento a soltar-lhe
os cabelos, até que o frio
da tarde a faça correr para casa, onde
nenhuma lareira a espera.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Tempo fluvial

Na fonte, a água da cisterna corre
como o tempo que te percorre. Entras
nessa água para respirar os instantes
que te faltam; e é como se um rio
parasse para que o atravesses, sabendo
o que te espera na outra margem. Então,
os teus pés descalços pisam as pedras
amaciadas pelos invernos; e sobes
até aos primeiros arbustos, para
descobrires que o rio voltou a correr,
e os teus instantes se desfizeram como
o pólen das vidas que por ti passaram.

Outro sebastianismo

Com um olhar, pede-me que
a siga; mas o quarto que indica está
fechado há muito, com os ogres metidos
na cama e as bruxas a penteá-los. No
entanto, vejo nos seus olhos um outro
sonho: o palácio onde existe um trono
vago, onde ninguém se quer
sentar. E pede-me que entre na sala
vazia, para que seja eu a tomar conta
desse reino. Digo-lhe que o lugar
está reservado para o príncipe que nunca
há-de voltar; mas vou atrás dela,
acordando os ogres, irritando
as bruxas que os penteiam, e
tirando o trono a um rei que nunca vi.

quinta-feira, dezembro 27, 2007

Equinócio

O amor tem uma música que nasce das
catorze linhas que se encontram entre os
dedos que escrevem o soneto e os lábios
que o lêem. Toco esta música quando
desenho o teu rosto, e começo a seguir
a linha que se solta dos teus lábios para
ver se chego ao horizonte do teu corpo,
onde o verso dobra o círculo de um
horizonte imprevisível. E dás-me o outro
lado da vida, para que eu descubra
o continente em que o sol nunca se põe,
as ilhas quentes de um calor de pássaros,
e o rumor incessante da maré a que a
tua voz roubou a espuma de um murmúrio.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

Enigma


Procurei um graal que pudesse pousar nos teus ombros,
para o encher com o filtro que embriaga os deuses
famintos de amor. Mas tu soltaste os cabelos
e escondeste-me o teu corpo, para que eu entrasse
na sua floresta em busca de uma clareira. Perdi-me
por entre as folhas e flores de uma vegetação de
murmúrios; e quando ouvi um canto de pássaros
anunciarem a madrugada, já não precisei de
nenhum graal para descobrir o teu segredo

A romã



Tirei os bagos, um a um,
de dentro da romã. Juntei-os
no prato do poema, e construí com eles
a tua imagem para que
a pudesse morder como se ama,
até ouvir o teu riso perguntar-me: «Que
fazes?», enquanto libertavas
os seios para que a luz os mordesse
como se morde a romã.

terça-feira, dezembro 25, 2007

Tempo


Colhe os frutos da manhã. Não sabe
ainda o que o dia irá trazer; e dispõe
o tempo por entre romãs e figos,
ouvindo o bater dos segundos no relógio
da alma.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

O que leio nos teus olhos


O que leio nos teus olhos:
o que um deus distraído escreve na linha
do horizonte, e passa para o outro lado
do verso;
um orvalho que escorre da folha
onde o poema nasce, e cai como lágrima
na terra fértil da inspiração;
um cair de pálpebras quando o sol
do amor se atravessa à tua frente, e o seu brilho
te ofusca;
e o espelho em que o amor se reflecte
quando o olhas de frente, e descobres nele
o teu rosto.

domingo, dezembro 23, 2007

Dia de sol


O sol do inverno limpou-te do musgo
da noite. E escrevo nos teus olhos as palavras
que o amor me ensina, como se precisasses
delas para ver o céu que percorre o teu
rosto.

sábado, dezembro 22, 2007

O amor



Ao dizer que te amo é

como se as portas da vida se

abrissem, e uma luz nascida de dentro

do desejo de ti me trouxesse

até mim. Mas ao dizer

que te amo, são as portas

da noite que se fecham, e é

contigo que espero a última

madrugada, onde entre

mim e ti

nenhumas portas existam.

quarta-feira, dezembro 19, 2007

Um poema escrito neste ano que chega ao fim

pode ser só o que está escrito
no que é escrito sem o ser;

e só se escrevo que tudo está dito
sei o que o poema quer dizer:

ser escrito sem que tenha de o escrever,
dizendo só o que tive de dizer.