A a Z

segunda-feira, julho 31, 2006

Natureza morta com Juízo Final

Gosto de ir à praça, escolher o peixe,
como se estivesse no lugar do arcanjo
que separa as almas entre as boas e
as más. Mas quem põe o peixe na balança
é a mulher da praça; e não há nenhum
juízo de valor no seu gesto, nem
executa nenhuma sentença quando,
depois de lhe cortar a goela e de
lhe arrancar as entranhas, começa
a escamar o peixe, para o meter
no saco. Então, um vago sentimento
de culpa faz-me pensar que poderia
estar eu nas suas mãos; e enquanto
espero que acabe o seu trabalho, prefiro
olhar para o lado da fruta, onde
a natureza se rege por outras leis.

domingo, julho 30, 2006

Arbusto (fragmento)

Na noite em que bebeste medronho,
e me pediste a lua, ouvi os deuses cantarem
de dentro das pedras. Enquanto me fazias
perguntas, e eu te olhava como
se nunca te tivesse visto, limitei-me a recolher
o canto que subia da terra, como
se nele estivesse a resposta
que me pedias. E entre o pedaço de seio
que subsiste dessa noite, e a lua
que não fui buscar, o tempo escorre
pelas mãos que guardaram a tua voz,
como se fosse um fruto, e a deixaram
macerada nos meus ouvidos, para
que dela nascesse o licor
do poema.

Flores

Bazille

É nestas flores, em particular, que
vejo desenhar-se uma linha que me leva
de mim a ti, passando sobre um campo
invisível, onde já não se ouvem
os pássaros, e onde o vento não faz cair
as folhas. Estamos em frente de um canteiro
puramente abstracto, e cada uma destas flores
nasceu das frases em que o amor se manifesta,
e do movimento dos dedos sobre a pele,
traçando um fio de horizonte
em que os meus olhos se perdem. Por isso estão
vivas, e alimentam-se da seiva
que bebem nos teus lábios, quando os abres,
e por instantes a vida inteira se resume
ao sorriso que neles se esboça.

sábado, julho 29, 2006

Natureza morta com copo de vinho e taça de prata

Pieter Claesz

Há uma referência à fotografia que se perde
quando, no fundo da mesa, uma linha de luz
separa o pano de um fundo escuro de
parede. Posso ver, aqui, um fim de refeição;
tu saíste da mesa, e ouço ainda os passos
que se afastam no corredor em direcção
à porta. Mas o ruído da conversa ainda
ecoa neste cenário; e as tuas mãos pousam
no rebordo deste prato, como se aí
quisessem deixar um calor que o metal
ainda reflecte. «Por que não vieste comigo?»
Ou: «O que te prende a essa taça caída
do passado?» Procuro as palavras que faltam
para completar uma resposta; e tiro-as
do meio de nozes e avelãs, partindo-as
nas sílabas que me dão o sabor dos teus lábios.

sexta-feira, julho 28, 2006

Natureza morta com ramo de flores, cesta de fruta e garrafa de vinho

Carolus-Duran
Quantas vezes, à tarde, ouvindo o vento
que passa por entre as telhas, e sabendo que há
uma fatalidade que se oculta nas nuvens
brancas do verão, contei as horas
num exercício de matemática que me serviu para
separar o instante e a eternidade. No entanto,
ao ver as flores que alguém dispôs numa jarra,
deixei de precisar dessas contas. Na sua beleza,
o instante concentra a arte mais perfeita
do tempo, que consiste em mostrar
como se fosse eterno o que, em breve,
cairá por terra. E se não preciso de pensar
muito naquilo que é evidente, é porque
o outono me dá outra certeza, quando colho
os frutos dos ramos que se estendem pelo
campo da memória, e os ponho na cesta de onde,
um dia, os irei tirar para saber, exactamente,
a que árvore pertence a tua imagem.

quinta-feira, julho 27, 2006

Natureza morta com rédea e freio

Torrentius
Que lábios tocaram naquele copo, pergunto-me; e
sei que não foram, sem dúvida, os de Jan Simonsz Van de Beeck,
mais conhecido pelo nome de Torrentius (sobretudo
depois da sua condenação). Há uma transparência no vidro
que me faz pensar que foi usado uma única vez,
para reflectir a luz da janela que também surge
em cada um dos recipientes que o rodeiam; e
a folha de papel sobre a qual assenta a sua base,
com partição e texto, sugere um bom conhecimento
de música. Tudo ali surge com uma nitidez
tão exacta que nos poderia levar a espreitar, através
do copo, a parede - e ver a rédea e o freio que serviram
ao amigo de Torrentius, o farmacêutico Jeronimus Cornelisz,
a dominar os náufragos do Batavia, que se afundou
nos recifes de uma ilha perdida nos confins da Austrália.
Mas Cornelisz aproveitou o seu poder para seduzir
a jovem Lucrécia Van der Miljen; e também não sei
se partilharam um copo tão transparente como aquele em que
Torrentius não chegou a tocar. Por fim,
a música: é o que fica de tudo o que vemos. O resto -
heresias, viagens, massacres e condenações - perdeu-se
no tumulto das histórias. E resta-me pegar neste copo,
enchê-lo com o licor frio das tempestades,
e esvaziá-lo, devagar, enquanto um cavalo sem rédea
nem freio atravessa o horizonte.

quinta-feira, julho 13, 2006

FIM


AMOR

Desfolho a rosa furtiva, com
os veios corroídos pela seiva
de um relâmpago frio.

Amo a lentidão imprevista
do instante que os teus seios
elaboram.

E ouso o rio de púrpura
exangue que irrompe no leito
do teu sexo.


Maio a Julho de 2006

terça-feira, julho 11, 2006

Aparição num dia de inverno


Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás:
o amor falou através dele. Ouvirás no seu ritmo
a voz que tantas vezes desejaste; reconhecerás
nos seus versos o corpo que encheu
a tua vida; tocarás em cada uma das suas palavras
os dedos que te ensinaram a medir os dias
pelas suas contas de ternura. E o tempo
entrará por ti como esse rio que alagou os campos
do inverno. Olharás à tua volta, vendo a desolação
de uma paisagem inundada. Algures, porém,
uma árvore antiga sobressai; e os seus ramos
verdes dar-te-ão a esperança de uma nova
primavera, em que voltes a ouvir a voz
que o poema te trouxe com os seus dedos
de música.

segunda-feira, julho 10, 2006

Flora

Arnold Böcklin
Encho de luz
o teu corpo
como um copo

uma saúde
ao amor

bebida que
não se esgota
numa vida.

domingo, julho 09, 2006

Mãos postas

Frederick Holland Day

Entrega-se ao dia que nasce, ouvindo
as aves que emergem da névoa com o seu canto;
e a maré de sensações que acompanha
a madrugada sobe pelo seu corpo,
submergindo o lodo dos sonhos
com a espuma luminosa do primeiro
sol. Mas reza ainda ao deus
que se perdeu na areia solitária
do tempo; e as suas pálpebras caídas
guardam as imagens que pertencem
à noite, como se precisasse delas,
ou como se esperasse que alguém abra
a janela, e lhe diga ao ouvido
as palavras limpas da bruma matinal,
libertando-lhe as mãos para o tecido
do amor.

quinta-feira, julho 06, 2006

Postal



Podia ser uma dessas imagens com estátua
e pombos à volta. Podia ser, também, uma
paisagem (montes, vacas a pastar, a linha
dos campos cortada por um rio). Podia
ser, ainda, uma rua típica, fachadas com
varandas e azulejos, janelas fechadas,
portas de madeira. Podia ser um castelo
em que não há reis nem rainhas, mas uma
corte plebeia, de máquinas a tiracolo. E
se fosse uma igreja, poderia ver-se o portal
com os santos e as virgens do costume (em
baixo, um Juízo final; e em cima o Cristo em
majestade). Mas é apenas este postal que
te escrevo, e de onde apago todas as imagens
para deixar, apenas, o papel em branco
da memória em que o teu rosto se imprime.

terça-feira, julho 04, 2006

A mulher do cravo

Alfred Stevens

Há uma dúvida na sua imagem, que
vem da música que lhe cai sobre os ombros,
e se derrama pelo vestido, espalhando-se
pelo chão onde cada som se perde no
envernizado da madeira. Que flor
é essa que segura nos dedos, como se
a tivesse acabado de colher? De quem a recebeu,
ou a quem a destina, agora que uma porta
se entreabriu e o ar fresco da manhã entra
pela sala, convidando-a a sair? Liberto-a
de si própria; e ao vesti-la com um manto
de orquídeas, espero que pegue no leque,
para o abrir e fazer voar as pétalas
da vida por entre o som do cravo
que ecoa nos corredores
da sua memória.

Ninfa

Léon Gimpel

Distraiu-se com o pássaro; e
deixou o fundo da água, onde
se deixou adormecer, para
olhar o campo e a vida natural
a que já não pertence. O calor
da tarde restitui-lhe um impulso
de respiração aos seios; e
as mãos encontram o caminho
da matéria, colando-se à dureza
da pedra. Um desejo antigo
percorre-lhe os braços, como
se alguém a esperasse para
um novo abraço. O pássaro,
porém, volta a voar, restituindo
ao céu o silêncio; e ela hesita,
como se pudesse sair da água,
e confundir-se com as flores
que enchem a terra fértil.

segunda-feira, julho 03, 2006

Reflexo


Sem nada para fazer, olha-se no espelho
do quadro, procurando uma resposta. Ou
será o contrário, sendo ela uma projecção
da sua própria imagem? No fundo, é o movimento
do olhar que vai de uma para outra que
impede uma certeza: se é no horizonte do quadro, de cuja
perspectiva ela faz parte, que se encontra a realidade,
ou se é no pensamento da mulher
que vê o seu reflexo que o mundo se descobre,
para que ambas se reconheçam a mesma? Olho-as:
e também eu não sei a que espaço pertenço,
quando a janela está aberta, e a luz que entra
me empurra para fora, onde uma primavera
é possível. Elas, no entanto, não querem saber
disto; e é como se a mulher que se ajoelha,
na cadeira, esperasse o milagre que a faça
sair do quadro, e avançar pelo dia,
como a luz avança pela sala onde nada acontece,
a não ser este olhar que as prende uma
à outra, e me deixa de fora.

domingo, julho 02, 2006

Acordar


Prefiro ao musgo das ninfas o calor
da tua pele, quando a tarde a envolve
com o seu bafo de fogo, e um vento
de folhas abstractas a percorre
numa florescência de desejo. Por
vezes, deitas-te com o azul
das palavras que nascem de
um vitral de murmúrios; ou
então, os teus olhos reflectem
todas as mãos que tocaram
os quatro cantos da tua vida,
antes que o teu sorriso ilumine
apenas o instante que a tua boca
transforma na eternidade
dos amantes. E ouço a música
lenta da tua respiração ritmar
um bailado de corpos num sulco
de chama, rompendo a teia
que nos prende com os dedos
brancos da madrugada.

Fuga


A mulher que vive no poço emprestou-me
o seu corpo nocturno no espelho do sonho. Tem
os traços pálidos da água negra, e os olhos
transparentes de uma ausência de luz.
As suas mãos são frias quando as toco;
e os cabelos derramam-se pelo peito,
escondendo os ombros onde murcharam
as flores da manhã. A sua voz, porém,
tem a frescura de um desejo de sol;
e o seu rosto liberta-se da solidão
dos abismos, com a dureza do âmbar
que dá cor aos seus lábios.

sábado, julho 01, 2006

Quadro lógico


A ideia de um recomeço prolonga
o que se encontra no coração da ausência.

Quanto aos pensamentos,
coloco-os no extremo da sensação
pura, como se não passassem
de uma desordem da ideia.

E envolvo-te com o véu
das palavras, para que só o silêncio
te possa despir.