A a Z

segunda-feira, abril 28, 2008

Tear

Num reino de bruma, entre os ramos
de árvores quase secas e breves trilhos,
o ar libertava uma vaga espuma,
e a luz soltava líquidos brilhos.

Numa clareira, sombras de saudade
caíam sobre arbustos rasos, e um canto
de campo enchia de sede os vasos
que o tempo partiu num dobrar da idade.

Colhi antigas papoilas, e colei-as
no álbum do horizonte, com o cuspo
do poente, enquanto uma voz distante
rezava o fim de uma oração doente.

E na água parada da lagoa, com os
braços soltos como remos sem uso,
uma parca branca vogava, à toa,
tecendo o destino na linha do seu fuso.

sexta-feira, abril 25, 2008

O caminho das revoluções



Nas cidades estranhas, onde as revoluções se fazem
devagar, e os jornais são lidos de trás para a frente, ouço
os pássaros que cantam nas árvores sem folhas. Um homem aponta
a lanterna para a porta aberta, e quando lhe dizem
que é dia ele responde que é cego, e precisa
de acender a lanterna para ver o caminho que nunca
há-de ver. À entrada da casa, onde a mulher espera
que ele entre, a revolução já subiu as escadas até ao infinito
onde se juntaram todas as revoluções. A burguesia das cidades
estranhas aquece o chá para que as revoluções o bebam
pelas chávenas de porcelana que ninguém partiu, como
se as revoluções precisassem de chá. O cego continua
a apontar a lanterna para as escadas, onde a mulher
pensa se há-de fechar a porta para que as revoluções
não voltem a sair, depois de tomarem o chá. E a burguesia
enche de açúcar as chávenas de porcelana, onde o chá
fumega, para adoçar a boca das revoluções. A mulher
fechou a porta; e o homem apaga a lanterna, para finalmente
ver tudo o que se passa à sua volta.

segunda-feira, abril 14, 2008

Fim de verão


Nos verões da infância o mar ficava longe,
atrás dos muros que davam para as falésias,
e ninguém se metia pelas ondas a não ser
os pescadores, depois de empurrarem os barcos
e puxarem as redes atrás deles. Nas esplanadas,
havia mulheres, com crianças e criadas a tratar
delas, e protegiam-se do sol com as sombrinhas
que serviam para esconder os seus olhares
furtivos, quando não queriam que vissem
para onde estavam a olhar. Nesses verões, o mar
era a única coisa que mexia, sob o céu imóvel
e um mundo que parecia tão imóvel como o céu,
enquanto as mulheres conversavam, longe
dos homens que estavam nos cafés, de fato escuro
e gravata, a discutir negócios e notícias. A burguesia
parecia eterna, nos verões antigos, e os pescadores
eram luzes longínquas, nuns barcos que a noite
escondia, e não se sabia quando voltavam, a não ser
que o farol tocasse, à noite, e já se sabia que a manhã
seguinte era de nevoeiro. Nos cafés, os homens
não se importavam com isso, e pousavam os chapéus
à entrada, passando a manhã a discutir negócios
e notícias, até o nevoeiro se levantar, e as mulheres
encherem a esplanada de criadas e de crianças,
sem se importarem com as ondas onde nenhum
barco entrou, depois da noite de nevoeiro. Mas
as suas conversas eram mais baixas, para que ninguém
as ouvisse, e não se soubesse que o verão chegava
ao fim, como os negócios que faliam, e as notícias
que chegavam do fim do mundo a dizer
que aquele mundo chegava ao fim.

segunda-feira, abril 07, 2008

Visita

Foi nos salões antigos onde se tomava chá
a horas certas que as flores encheram a sala
de perfume; e as mulheres pálidas desmaiaram
no espelho que já não guarda os seus reflexos,
por entre os quadros que enchem as
paredes que o tempo esburacou. Pergunto-lhes
o que fazem ali, ainda, sombras sem o eco
de uma vida; e elas dizem-me que respiram
os sais do passado, e recuperam o ânimo
para sair de casa, em busca de um jardim
com sol. Peço-lhes que olhem para a
objectiva: e tiro-lhes o retrato que as fixa,
distraídas da morte que as levou, para que
os seus lábios não percam as frases inúteis
das tardes de salão. As flores murcharam;
a janela do fundo já não tem vidros; e
os espelhos andam pelas feiras do ladra, sem
ninguém que os compre. Mas elas falam,
como se o seu mundo não tivesse desaparecido,
e esperam pelo chá que nenhuma criada lhes
vai trazer numa travessa de esquecimento.

sexta-feira, abril 04, 2008

Na margem de um retrato


Às vezes, há nestes olhos uma melancolia
que não sei explicar, como se um reflexo de tarde
se sobrepusesse à luz que as palavras lhes
emprestam. Derramo as cores da manhã
sobre o rosto, para que o céu se abra na sua
alma; mas um resto de tintas nocturnas
mancha-o, ainda, enquanto o tempo corre
nas águas do rio invisível que
a sua boca silencia.
Posso dizer, no entanto, que
as linhas do desenho que a envolve
são nítidas, e me obrigam a usar um verso
claro como o branco da sua imaginação. Assim,
as coisas do poema coincidem com a
realidade que o alimenta, e transformam
o que parece abstracto num sentimento
concreto como o sentido da frase.
Mas o que ela diz pertence ao seu
mundo; e o rio pára, para que um reflexo
natural sirva de cenário ao que
nunca saberei da sua vida.

quarta-feira, abril 02, 2008

Sonho

A forma que o sonho adquire fica presa
nas mãos, de onde se solta à medida que a noite
avança. E se os olhos estão fechados, é porque
isso é necessário para que se possa ver
a única paisagem que importa: um comboio
de palavras que avança nas linhas da vida,
atirando para o céu do futuro um fumo
de imagens. O poema captá-las-á; e
poderás acordar, então, vendo que o sono
serviu para alguma coisa.