A a Z

quinta-feira, agosto 31, 2006

Quadra estival

De quem são essas flores,
a quem dás essa mão?
Quem escolhe as tuas cores,
entre rosa e limão?

quarta-feira, agosto 30, 2006

Ciclo


A solução faz parte do paradoxo: vemos
o lado invisível das coisas, e só um cair de
pétalas na areia nos revela a sua essência,
como se não houvesse nada mais a dizer.
Porém, ao pensar naquilo que existe, e
no que está para além do que vemos, a
revelação do enigma torna-se, por sua vez,
uma incógnita, como se o problema fizesse
parte da solução. Não adianta, por isso,
pedir-te que te levantes, ou que esqueças
o que fez cair as flores. O outono é uma
parte do teu enigma; e se o esqueces,
quando sonhas a primavera, logo o ruído
do vento que afugenta as aves te restitui
a realidade que não desejas.

terça-feira, agosto 29, 2006

Pássaros

Há pássaros que querem levantar voo,
e não conseguem. Não estão presos,
o céu está livre, nada os impede de voar.
Mas ficam parados, como se não tivessem
asas, ou a terra os hipnotizasse. Não
precisam de gaiola; podemos abrir
portas e janelas: o seu lugar é onde
estão, e hão-de ficar. Mas os dedos
que tocam o seu corpo frágil
sentem uma hesitação; e os olhos
que os fixam adivinham o desejo
de se libertarem. Porém, estão
imóveis. São os pássaros que
não conhecem outono nem inverno,
os que não sabem para que lado fica
o horizonte, os que nunca roçaram
o dorso das nuvens. Tenho estes
pássaros na cabeça; e mesmo
quando lhes abro o campo do
poema, não saem de dentro de mim,
ensinando-me o seu canto.

Pedido


O que te peço:

uma moeda contra o vazio do coração,
sem cara nem coroa, valendo apenas
a brancura do teu corpo;

um laço nos cabelos, a prender
o fruto da tua alma que amadurece
nos meus olhos;

o murmúrio que esqueceste,
uma noite, num fundo de almofada,
e ainda voa na minha memória.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Palavras


Pousei os livros na mesa para
ver o que os livros dizem; e
abri-os, como se abre a melancia, para
provar o que vem lá dentro,
com o sumo a escorrer por entre
sílabas e versos.

Mas o que me ficou nas mãos
foi a palavra única, a que juntei
o amarelo do limão
e a transparência da água; e espalhei
essa palavra no campo, para
que outras palavras nascessem
da sua música.

Na primavera, entrarei
nesse campo como se entra
num livro, descansando à sombra
das palavras que semeei.

sexta-feira, agosto 25, 2006

Retrato com véu

Saber o que és, dizer o teu corpo,
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;

e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;

tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,

e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Iluminura




Estes são os barcos da manhã,
com as suas velas de sol, e
uma caligrafia de vento
nas suas proas.

Sulcam o mar da estrofe,
rasgando o limite do verso,
e o seu horizonte é
feito de palavras.

Afrontam o temporal,
como se fosse esse o seu rumo,
e levam um sonho de ilhas
que só as aves conhecem.



quarta-feira, agosto 23, 2006

Retrato já antigo

Horacio Ferrer

Ao olhar-te pensei: para que
preciso dos fotógrafos? O flash
vem dos teus olhos, para que
o teu rosto se revele na minha
alma, onde o irei guardar.

terça-feira, agosto 22, 2006

Nu com natureza morta

Horacio Ferrer

Ao pousar a cabeça no braço,
em cima da mesa, como se te esquecesses
do mundo, deixando um espaço entre ti
e o prato de fruta, lembras-me que
existe um centro, algures, onde
os movimentos de rotação da vida e
dos sentimentos se decidem. Por
vezes, vão em sentidos contrários; e
talvez seja nisso que pensas,
enquanto a tarde não acaba, e te
obriga a sair da mesa para te
vestires. Mas na sala deserta ficará
o prato, com a fruta intacta; e
ao pegar na laranja que não
quiseste, sinto um sumo de palavras
escorrer-me por entre os dedos,
como se a tua voz habitasse
este vazio.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Mulher nua


J. Sunyer

Procuro um adjectivo para cobrir
o teu corpo, belo como o lençol da madrugada,
e lento como o teu abrir de pálpebras
no instante de acordar. Vou buscá-lo
a um armário de sinónimos, por entre
as palavras redondas do amor. Toco
os teus lábios com as suas sílabas,
sentindo a branca humidade da noite
no leve murmúrio em que pousam
os meus olhos. E vou descobrindo a luz
das palavras que tiro de cima de ti, para
que apenas te cubra o adjectivo
que te veste, nua, nos braços
que te procuram.

domingo, agosto 20, 2006

Breve nota

Claude Monet

O amor é este doce animal
que acaricio com os olhos, quando
ouço um pássaro de claridade
atravessar o fundo
do coração.

E o seu voo afasta
as nuvens da alma, limpando
o céu onde o teu rosto
inscreve a luz
da manhã.

Descrição


Mário Eloy
A única imagem que resta
das coisas que estão em cima da mesa:
o copo que esvaziaste,
depois de pousar o cachimbo apagado
sobre o livro.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Elegia


Se a manhã nascesse da tua ausência,
a névoa se dissipasse entre os teus dedos,
o frio orvalho secasse nos teus olhos,
a noite passasse sobre os teus ombros;

se a tua voz fosse mais do que memória,
as tuas palavras rompessem este silêncio,
um vento te sacudisse os cabelos,
os teus braços fossem um fim de viagem;

se um pássaro cantasse no teu rosto,
o céu se abrisse nos teus lábios,
as tuas mãos colhessem o sonho

em que o teu corpo se vestiu de música:
um sulco de sol afastaria a sombra,
um eco de vida encheria o vazio.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Natureza morta com moinho de vento

Roy Lichtenstein

A chuva bate nas velas do moinho
e fá-las andar, como um barco;

o vento espreme as velas do moinho
e tira-lhes o sumo, como se fossem limões;

as mãos tocam as velas do moinho
e põem-nas a cantar, como cordas de violino;

e dentro do moinho as mós rodam,
fazendo uma farinha de palavras e imagens.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Manhã

A mulher procura a flor que
nasce no meio das flores; mas não é a flor
habitual, com o caule e as pétalas,
nem com o perfume, das outras flores.

A mulher perdeu a imagem
da flor, e não sabe onde se encontra
a flor perfeita, com as cores
puras do amor, e o abrir matinal
em que a vida eclode.

Podia ser ela a flor, e
as folhas que os seus dedos separam
serem macias como a pele
do seu corpo, e os finos estames serem lisos
como os seus cabelos.

Mas o seu trabalho é procurar
a flor perfeita, como se ela não crescesse
no fundo dos seus olhos, quando os abre,
e o dia nasce no seu rosto.

terça-feira, agosto 15, 2006

Epigrama com escultura



Olho-te; e as minhas mãos
desenham não o teu corpo
mas o meu olhar sobre ele,
como se o que vejo nascesse
do que tu és, e o que tu és
se transformasse no que vejo.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Lamento

Servir-me-á de refúgio o outono?
Ou virão ao meu encontro as aves
da sombra, batendo as asas
negras contra o vidro do
passado?

Mas os caçadores não as
capturam, quando se confundem
com as nuvens; e o vento da noite,
que devasta os campos, serve-lhes
de abrigo.

Alimento-as de versos;
mas não cantam. Pousam nos telhados
da alma, e o seu choro junta-se
à chuva.

domingo, agosto 13, 2006

Leitura

Em 1826, Goethe abriu o sepulcro do seu amigo Schiller
para lhe tirar o crânio, e o colocar sobre a secretária.
Vendo-o, podia continuar o diálogo em que
muitas vezes entraram em conflito, a propósito da
Grécia, ou do próprio destino; mas o silêncio de
Schiller não era uma ausência de resposta às suas
interrogações, e através das cavidades dos olhos
Goethe imaginava o longo discurso em que uma
nova razão se impunha. Por outro lado, afastava
do seu espírito a ideia de morte; e a matéria em
que podia tocar trazia-lhe essa voz antiga, com
o seu ritmo inacabado, para que ele a vertesse
no papel onde iriam surgir os tercetos do
ossuário. «Assim, a vida pode nascer do nada»,
pensou; e dirigiu o seu pensamento para a
gruta onde Madalena se deitou, colocando
o livro sobre um outro crânio, para que ele
ficasse à altura dos seus olhos, e o sentido do
que lia se apoiasse no vazio da morte. Mas
a comparação não passou daqui: para Madalena,
a luz vinha do entrada da gruta, onde se
avistava o dia; para Goethe, a natureza
não revelava mais do que aquilo que o
homem nela descobria. «E se for um deus
que a habita?» Porém, tirando o livro
a Madalena, Goethe pôs fim à conversa,
deixando à sua vista o que é o fim.

sábado, agosto 12, 2006

Natureza morta com Marx


As mulheres que traziam a fruta nos cestos, e
os pousavam no chão de pedra, em frente das casas,
para que as senhoras a pudessem escolher, só
sabiam o que era a luta de classes quando ouviam
discutir os preços que elas davam, e ou baixavam
ou não vendiam. Mas quando voltavam para o campo,
com os cestos vazios, e os bolsos também
pouco mais do que vazios, pensavam noutras
coisas: no que as esperava nas casas onde
a doença entrava com o inverno, e no que poderia
acontecer se não chovesse, e as árvores secassem
de um ano para o outro. Nas casas das senhoras,
porém, o cesto de fruta, em cima da mesa,
não fala destas coisas. E quando alguém ia tirar
as uvas, para as provar, o sabor nada tinha de amargo,
a não ser que, num breve instante, a imagem
das mãos que as apanharam, naquela madrugada,
não voltasse a trazer a ideia da luta
de classes para dentro do cesto.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Mulher de pé em frente da janela

Luc Hueber
Vivi esta indecisão numa paisagem
cortada pela gramática, como se a frase
que iniciei ficasse interrompida
numa linha de horizonte. Mas se passar
esse horizonte, como se voltasse
uma página, o caminho seria o mesmo;
e os substantivos que ficaram sobre a mesa,
pesados como o calor que me obriga
a ficar em casa, reflectem-se no vidro,
onde os deixo ficar,
para que o verde do campo
me liberte da obscuridade da memória.

quinta-feira, agosto 10, 2006

Epigrama com nozes

M. Billing



Quando apanhei as nozes, sem olhar para os ramos
carregados, senti na dureza da casca a eternidade
da árvore.

Quando parti a noz, como se abrisse a Terra
ao meio, encontrei a origem do mundo na forma
do fruto.

E quando pousei as nozes entre o vinho
e as uvas, ouvi os pássaros da tarde sacudirem
o verão.

quarta-feira, agosto 09, 2006

Paisagem

Carel Willink

O vento que desce das montanhas
destrói o caminho à sua passagem.
Recolho estátuas derrubadas
do seu sopro; respiro nele
o bafo de um deus subterrâneo;
ouço no seu arfar as maldições
da tempestade. Este vento
fala a linguagem dos milénios;
as árvores curvam-se sob
as suas frases; o homem
desaparece do seu horizonte.
Não serve de abrigo às aves;
as nuvens afastam-se para
que ele siga o seu curso; um
cume de neve não o irá deter.
Só uma nesga de azul, num canto,
anuncia o céu de amanhã.

terça-feira, agosto 08, 2006

Retrato de Maria Pucci

E. Hébert

Um silêncio sela os lábios
que recebem a sombra dos olhos;
e nenhuma palavra diz
o que na sua cabeça se esconde.

As mãos, porém, esperam
que outras mãos lhes toquem;
e o seu rosto transforma-se
sob a luz do desejo.

E corro a cortina branca
da sua pele sobre o segredo
que ela guarda, e não
me deixa revelar.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Natureza morta com rosas


Fantin-Latour


Vi morrerem estas rosas,
enquanto a tarde caía; e
vi-as renascerem, quando
a noite derramou sobre
elas a sua água negra. De
manhã, estavam vivas;
e pude colhê-las para as
pôr na terra do poema,
onde a sua frescura se
mantém, como se cada
pétala fosse uma sílaba,
e em cada rosa se ouvisse
a palavra inicial.

domingo, agosto 06, 2006

Repouso

François Boucher
O anjo que passou por ti sem deixar
as suas asas no teu corpo podia ter sido
a abelha que percorre as flores,
recolhendo o pólen do amor.

sábado, agosto 05, 2006

Natureza morta com jarro e maçãs


Picasso

As mãos que moldaram este barro
acompanhando a rotação da luz
correram as cortinas da noite,
abriram as portadas da manhã,
deixaram entrar o vento da vida,
encheram de sonho os olhos,
construíram um muro de água.

As mãos que colheram estas maçãs
desenhando o círculo de um seio
subiram à copa das nuvens,
arrancaram as folhas ao horizonte,
limparam de erva o infinito,
plantaram a semente do desejo,
tocaram o rosto da tentação.

O poema que bebe esta água,
e tem a polpa deste fruto,
segue a forma que estas mãos
lhe emprestam, como se
moldasse através delas
o barro das palavras
de onde nasce o teu corpo.









Natureza morta com livro

Fantin-Latour

Abro o livro que deixaste sobre a mesa,
como se nele estivesse uma resposta. Procuro a tua voz
em cada página, e tento reencontrar um sentido
para as frases que se acumulam, como se
não me tivesses dito, uma vez, que nenhuma
resposta se encontra nos livros. Mas
é neste livro que me deixaste, vazio
como a chávena que ninguém levou, que
uma resposta se encontra. E apago, uma a uma. todas
as suas páginas, para ficar com o livro branco
onde irei escrever as frases que me possam
trazer de volta a tua voz, para que
em cada página me seja dada
a resposta que procuro.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Náiade

J.J. Henner

É assim que a vejo: deitada
no tampo da terra, ao lado de um rio transbordando
da taça do poema, oferecendo ao sol a sua pele
como o fruto caído antes do tempo.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Retrato de interior

Há duas coisas que se podem ver
no teu rosto: a atenção com que olhas
para a mesa que não estou a ver; e
a luz que se concentra nele, e
se afasta do canto para onde olhas.
Entre essas duas coisas, a tua vida
deixa de ter importância, como
se não houvesse substância para
além do que vês, e se resume ao
instante em que os teus dedos se
preparam para o desenho. No
entanto, há gente do outro lado
da janela, embora não saibas que
estás a ser vista. E eu próprio, que
estou à tua frente, começo a não
saber se é para mim que estás
a olhar, ou se é para o fundo do
teu quarto; e nessa hesitação,
poderia puxar-te para o corredor, e
levar-te até à porta da rua, onde
te poderias libertar da tela, e
ir comigo ao encontro do sol.

quarta-feira, agosto 02, 2006

O quarto vazio

Matisse
Tenho de encontrar um vocabulário
preciso para cada um dos aspectos deste
quarto; mas o que irá faltar é
a palavra que te irá substituir, ou
o movimento do teu corpo
a caminho da janela, para a abrir,
deixando entrar, com o sol, a sombra
das árvores para dentro de casa.

A cadeira está ali, inútil,
agora que partiste; mas deixo-a
estar, para o dia em que regresses,
como se o passado fosse o dia
de amanhã, ou a tarde mantivesse
a tua presença, trazendo de volta
o vento que servia de fundo
à música da tua voz.

E fecho as cortinas, para
que a escuridão se faça, e
o perfume das flores se
confunda com o teu.

terça-feira, agosto 01, 2006

Sótão

Maria Wiik
Diria ainda uma coisa absurda: a
atenção com que olhas o tecido, à procura
da mancha que não sai, ou dos fios
que se soltam, impede-te de olhares
a natureza morta que puseste em cima
da mesa, sem saberes que um quadro
não se resume a esse pormenor. Não
te quero distrair, nem espero que
me ouças, enquanto pensas se irás
precisar da tesoura, ou se mais vale
deitar o pano fora, e ir para a rua,
onde o movimento das pessoas te
irá afastar dos teus problemas. Mas
se o fizeres, a natureza morta ganhará
todo o espaço do quadro; e só a pulseira,
que entretanto irás tirar, para te
esqueceres dela no tampo da mesa, me
irá lembrar que estiveste naquela sala,
e que a tua ausência é mais importante
do que as flores que ninguém mais saberá
o que fazem ali, e quem as pôs num copo
de água, para não murcharem de vez.