A a Z

sábado, novembro 25, 2006

Confissão


Lembro-me de ter andado neste campo,
de ter sacudido o sol de dentro das espigas,
de ter ouvido ao longe alguém rir e depois o silêncio,
de sentir que nada se passava ao passar pelos muros,
de não ver ninguém e era a tarde a começar,
de fechar os olhos para me libertar do azul,
e de os abrir como se o céu tivesse outra cor,
de olhar para uma casa como se alguém a habitasse,
e de saber que as janelas se abrem para ninguém,
de perguntar de onde veio a flor que colheste,
sem me lembrar que é o tempo das flores,
de te perguntar quem és sem ouvir uma palavra,
e de ouvir tudo o que a tua respiração me diz,
de teres pousado a cabeça no chão
como se a terra te dissesse um segredo,
e de ter adivinhado o que a terra te disse
quando te olhei, e o teu rosto dizia tudo.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Vigília


Sonho por entre as linhas deste livro
um vento de pássaros que empurre
para longe as nuvens. Nos seus ecos,
um perfume de sílabas embriaga
o horizonte. E fecho os olhos, para
que o rio da memória volte a correr.

quarta-feira, novembro 15, 2006

Natureza morta com fruta

Depois de um dia de chuva arrumo,
no prato do poema, as peras
que saíram da cabeça de uma nuvem,
com um sumo de névoa e caroços
frios como os astros do inverno. Sento-me
em frente da mesa, e outras
nuvens descem do céu para esta
refeição de fruta. Peço-lhes que cortem
as peras com uma faca de granizo;
mas elas cobrem-nas de neve,
como se as quisessem levar a
uma comunhão de domingo. Resta-me,
então, esperar pela primavera; e ver
sair destas peras um ramo de nuvens
brancas, que ponho no céu
onde os pássaros o esperam,
para terem onde pousar.

domingo, novembro 05, 2006

Correspondências (variante)

Entrei contigo na floresta dos símbolos;
colhi-os, um a um, dos ramos verdes,
e dei-tos para que os abrisses, e deles
tirasses a mais bela das imagens.

Puseste-os no regaço do sonho,
deixaste-os amadurecer como
abstractos diospiros, leste o futuro
na sua polpa de consoantes.

E quando chegou o inverno,
bebeste o sumo das suas vogais
na taça do poema, ouvindo

a música do vento que agitava
a floresta limpa de símbolos,
na clareira aberta pelo teu corpo.

sábado, novembro 04, 2006

Sono


Disse-me o nome nos olhos fechados, leu
a palavra nos lábios que a não
disseram, abriu a mão que procurava
no labirinto dos lençóis.

Ficou o nome no mármore da tarde,
ficou a palavra na concha dos ouvidos,
ficou a mão que a sua mão encontrou
num ramo solto da memória.

E ao dizer o seu nome abro
os olhos que a acordaram do sono,
roubo-lhe dos lábios a palavra

que não disse, aponto-lhe com a mão
a saída do labirinto, corto com a manhã
o ramo em que a noite floriu.

quarta-feira, novembro 01, 2006

Destino




Nas feiras antigas, onde os homens passeiam
entre restos de comida e bancos partidos,
há uma boca que espera para
te ler a sina. Sentar-te-ás num tronco
de oliveira seca, estenderás a mão,
e ouvirás desfiar o teu futuro,
como se já o tivesses vivido. E
antes de pagar, podes ainda saber
que não precisas de sair de onde
estás, que o céu que fica sobre ti
conhece os passos que poderás dar,
e de nada te servirá tomar uma
outra direcção. Tudo está previsto:
menos o instante em que a leitora
do teu destino tirou o lenço que lhe
escondia o rosto, e os seus cabelos
se espalharam pela tua vida, mudando
para sempre o que acabaste de saber.