A a Z

domingo, janeiro 28, 2007

Balanço


Sentei-me à tua frente à espera
de te ouvir falar no branco que vem da janela,
e te envolve com o calor húmido de
uma palavra divina. Mas abriste
o leque, dizendo que é tarde para discutir
oráculos. Aceitei a tua resposta, como
se me dissesses que as interrogações podem esperar
por amanhã. No fundo, mostravas apenas
o movimento exacto da tua mão, segurando o eixo
do teu pequeno mundo; e tudo o que acontecia
limitava-se ao teu gesto. Agarrei as formas e as cores
desse pedaço trémulo de vida no ângulo
que o teu corpo formou com a luz; e segui o declinar
das pálpebras que o amor me oferecia, sabendo
que a usura do silêncio corresponde ao instante
em que os olhos se prendem, como astros
na declinação de um horóscopo.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Viagem

Se eu voltasse a nascer, e
as minhas mãos me ensinassem o caminho
que vai do coração ao mundo, e
os meus olhos me abrissem o círculo
que o mar desenha no horizonte,
e o meu nariz respirasse a luz que a manhã
solta de dentro da névoa, e os meus lábios
pedissem o pão de estrelas que as aves
trocam entre si, e os meus passos me conduzissem
para onde ninguém precisa de voltar,
o tecido da minha vida seria transparente
como o vidro da janela que não abro,
o fio que vou puxando seria eterno
como os números que contam os dias de um deus,
a tesoura da noite ficaria na caixa
que não precisei de abrir. Se eu voltasse
a nascer, e as velas do sonho me envolvessem
com o linho do seu vento.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Sombra

Quantas vidas em frente
da minha vida. Procuro nelas o meu reflexo,
e perco-me em cada rosto que encontro. Peço
ao céu uma névoa, para me esconder
de quem me rouba a alma; e a luz brilha,
mais intensa, para que todos se precipitem
sobre mim, e me tirem cada pedaço
do que sou, para o atirar a quem dele
precisa. Se ao menos o espelho
me guardasse a imagem; ou a janela,
ao abrir-se, me desse um impulso de ave...
Mas só existo para quem não sabe
que existo; e só falo para fugir de quem me ouve,
como se fosse a sombra de que me liberto
quando a sua sombra me prende
ao vidro.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Voo

O anjo que se esqueceu de fechar
a porta não irá regressar. Voa no espaço
a que nenhum de nós tem acesso. Só
o bater das suas asas ecoa num recanto
do que somos; e vou buscar esse ritmo
para construir o verso, enquanto pensas
se hás-de fechar a porta, ou deixá-la
aberta, para sempre.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

Tardes de costura


Nas tardes de outrora, as mulheres de província
juntavam-se a conversar sobre o que havia para
fazer na província. O dia passava por trás da
janela, e não havia nada para fazer na província
a não ser conversar sobre o que havia a fazer
na província. Eu ouvia as conversas dessas
mulheres, e sabia que o que havia para fazer na
província era ouvi-las a conversar, enquanto
faziam e desfaziam a costura da vida. O cheiro
das madeiras das casas de província enchia
a sala; e elas não davam pelo sol que atravessava
o hemisfério, enquanto as suas mãos rodavam
o tempo nos panos que bordavam. Às vezes,
as mulheres de província pegavam nas agulhas
como se fossem as setas que apontavam o
caminho para sair da província; depois, voltavam
a enterrá-las na tela, e era como se estivessem
a bordar o caminho para fugir da província,
enquanto o sol acabava de cair no fim do seu mundo.

terça-feira, janeiro 02, 2007

Teia



Estas letras são as aranhas inesgotáveis
do sonho. Vejo-as tecerem a teia onde entro,
e me deixo apanhar pelas leis do verso. Como
se entre mim e elas não estivessem as flores,
com as suas pétalas seguras pelo fio
que se soltou da primavera. Às vezes, queria
deixar estas páginas, e entrar pela porta
da vida; mas sei que continua fechada,
atrás de mim, enquanto não chego ao fim
do livro. Como se o fim não fosse o princípio,
e tudo recomeçasse, na teia do poema.

segunda-feira, janeiro 01, 2007



Quem não veio para jantar? Que
copo ficou por encher, que saúde não chegou
a ser feita? Sim, pensaste que eram passos,
ouvindo o bater da chuva nos vidros. E a vela
ardeu até ao fim, sem que ninguém
desse pela amargura que escorria
por ti, enquanto esperavas que
nada acontecesse.

Mas o anjo da noite andou
à tua volta, como se o ouvisses. O
ruído das suas asas confundiu-se
com o vento que fez cair as últimas
folhas da tua alma. E as palavras
secaram nos teus lábios, enquanto
a noite avançou até ao fundo
da tua vida.

Bebe a taça desta noite; saboreia
cada gota da sua treva. Amanhã,
uma nova luz a encherá com
o seu rumor matinal, para que a tua mesa
não volte a ficar vazia.

A leitora


Na penumbra da sala, um candeeiro
ocupa o centro do teu mundo.

Lês a vida pelo livro que seguras
na mão, aberto na mesma página.

Pelos vidros da janela, um resto de azul
esvai-se com a noite que chega.

Mas não vês o mundo, lá fora,
nem ouves nada do que se passa.

As flores murcharam na jarra,
o sofá continua vazio.

E lês a mesma página de sempre,
para que também a tua vida não mude.

Cenário


Nestas imagens de interior o tempo
não passa. Um desenho envolve cada
objecto com a luz do seu gesto; e
quando olho para o chão de madeira,
é como se houvesse reflexos de água
em cada tábua. Mas todo este cenário
está suspenso do laço que te prende
os cabelos; e sei que, ao desatá-lo,
as janelas se irão fechar, uma peça
musical encherá o teu corpo com
a sua harmonia, e a obscuridade
que acompanha o amor cobrir-te-á
com o manto quente da tarde.