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sexta-feira, abril 20, 2007

Num banco de comboio



No banco da frente da carruagem de comboio
que me levava para a praia, por entre as faúlhas da
máquina e o vento, ela segurava a aba do chapéu
e olhava para o campo, deixando-me sem saber
o que pensar. Mas era isso que ela queria: que eu
não soubesse que estava sem saber o que pensar,
quando largava o chapéu e o vento o atirava
para o banco de trás, onde tinha de o ir buscar. Então,
a sua mão segurava os cabelos; e eu deixava que
o tempo passasse, entre apanhar o chapéu e devolvê-lo,
para que a sua mão lutasse contra o vento que lhe
soltava o cabelo. Mas quando o chapéu voltava ao lugar,
e ela me olhava, era como se os seus olhos estivessem
cheios com o brilho das faúlhas que saltavam da máquina
a vapor, e incendiavam a manhã em que eu ia para a praia,
nessa carruagem de madeira onde ela me deixou sem
saber o que pensar, até hoje, quando um vento súbito
lhe arrancou o chapéu da minha memória dela,
e os seus cabelos dançaram no ar sem
que mão alguma os segurasse.

segunda-feira, abril 16, 2007

Vindima


Envolvo num murmúrio as flores
que o verso me dá. As pétalas
têm a cor dos lábios que
as cantam; e o pólen sabe ao mel
dos dedos que as colheram,
uma tarde, enquanto o sol
descia sobre os ombros nus
das colinas. Pisei-as com os pés
da estrofe, e o vinho do amor
destilou de um mosto de
sensações. Bebo-o do copo
do teu corpo; e uma embriaguez
de rosas alastra na vinha
do poema.

domingo, abril 08, 2007

Uma arte reflexiva

Tal como o pintor copia a natureza, o espelho
serve-se do que existe no mundo em que o puseram
para traduzir a realidade. Ao vê-la, no seu quadro
efémero, tem-se a impressão de que pode ser
um retrato, capaz de durar para além do instante
em que a mulher atravessa o quarto, de frente
para a mulher que a olha, enquanto bebe o chá;
e as frases que trocam perdem-se no espaço
entre elas e o tempo em que viveram. Mas
o movimento que a moldura fecha, enquanto
ela não sai do campo de visão, para se vestir,
é o suficente para denunciar que tudo se resume
a um instante, e que em breve um rosto voltará
para se olhar ao espelho, pentear-se, e retocar
a pintura. A natureza das coisas é tão simples
como isto; e quando o espelho ficar vazio, o que
importa é o jarro e a bacia onde há muito
secou a água com que ela lavou os olhos, cansados
da noite, deixando a sombra das suas mãos
confundir-se com o eco das vozes que a vida levou.

domingo, abril 01, 2007

Ausência


A mulher deitada, a mulher que se perdeu,
durante o sonho, e não sabe que o caminho
estava indicado nos seus olhos, procura o vazio
com a mão segura entre lençol e cobertor,
como se nesse intervalo houvesse ainda
uma saída para o desejo. No sono em que
a maré da noite se desfez num impulso
de névoa, os seus lábios murmuraram
o nome que não tem corpo; e em vão
esperaram o beijo que os iria selar,
os dedos que se afundariam no oceano
dos cabelos, a respiração que
lhe daria o ritmo da manhã. Por isso,
a mulher que acorda pede à noite que não
a deixe sozinha, como se o abraço antigo
se pudesse prolongar, ou o sol
não trouxesse o dia para junto dela.