A a Z

terça-feira, outubro 31, 2006

Epigrama com sumo


Desfolhando o livro
como se descascasse a laranja,
as palavras caíam-lhe como gomos
por entre os lábios.

domingo, outubro 29, 2006

Intervalo de leitura



No meio das palavras, um olhar. Não
por acaso, nem de propósito. O olhar que
resumiu todas as frases e todos
os silêncios. O olhar que as mãos escreveram
uma na outra, quando passaram
por entre gramáticas e dicionários,
e encontraram a única e última
palavra, onde começa e acaba
o amor.

sábado, outubro 21, 2006

Praia


Fez-me sentar à sua frente para ouvir
confidências deste lado e do outro,
sonhos que sopram como o vento
e como as nuvens se desfazem,

segredos que se passeiam nos lábios
e na boca se perdem quando os diz,
um futuro vago nas linhas da mão
quando por elas o tempo corre.

Viajei até ao fundo dos seus olhos,
atravessei o mar dos seus pensamentos,
desembarquei na praia do seu desejo;

e no instante em que a abracei
vi soltar-se a noite dos seus cabelos,
vi desatar-se o nó dos seus dedos.

sábado, outubro 14, 2006

Esfinge

Acordo-te de uma sonolência
de esfinge. Quem és? pergunto, em
que deserto procuraste o amor, e
que oásis se desfez nos teus
dedos, quando o tocaste?

Há um voo de ave perdida
nos teus olhos, quando os pousas
no chão, e um reflexo de charco
te faz subir ao céu onde as nuvens
chegam com o outono.

Não penses no inverno
inexorável; e guarda o pássaro
de algures na gaiola da tua
alma, para que o seu canto
te alegre nas noites mais frias.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Hesitação

Vinha de andar a pé, de se perder numa avenida
ao atravessar a a passadeira sem fim, de ouvir
os gritos da mulher louca no passeio em frente, de
espreitar as montras do centro comercial, de saber
que já não faltava muito para o fim do dia, de fazer
contas num caderno (o fim do mês não estava
longe), de conversar com a mulher que pediu um
café, ao balcão, e insistia em não se sentar, de
olhar para o velho que montava caixas de papel
numa esquina, e era a cama que tinha, de repetir
os recados que ouvira no atendedor do telefone,
de não perceber o que estava para acontecer, afinal
não tinha estudado para sibila, de pôr as moedas
para pagar o jornal, e o dinheiro estava certo, disse
a empregada do quiosque, de lhe perguntar de
onde era a sua pronúncia, e percebeu um país
de leste, de hesitar no caminho para a saída,
um corredor para trás, um outro para a frente,
e os dois iam dar à mesma porta, de não saber
o que a esperava, mas o caminho era sempre o
mesmo, de não ter certezas, e de abrir a carteira
para ver se lhe sobrara alguma, de ouvir que
a chamavam, e tinha-se enganado, de abrir um
livro sem o ler, só a fingir que tinha alguma coisa
que a ocupasse, e afinal quem se importava
com isso, de não ver que o céu se enchia de nuvens,
e não trouxera chapéu de chuva, e como iria
agora chegar a casa, só não se lembrava
que o céu era o seu tecto, e a rua o seu quarto.