A a Z

domingo, junho 29, 2008

Velho fado


Outro nome tem o fado,
pode ser o meu destino:
a vida a passar-me ao lado,
um desejo em desatino.


Olhar por cima do céu
quem anda em baixo na terra:
ser inocente e ser réu,
amar a pá que me enterra.


Não saber aonde vou
quando parto deste porto,
nem dizer a quem ficou
se estou vivo, se estou morto.


Se teu sonho me procura
nada tenho a dizer:
pode ser já noite escura,
ser treva um sol a nascer.


Mas se um dia te olhar
sem saber como te chamas,
há-de haver no teu andar
a sombra que tu reclamas.


Esta sombra que eu guardei
no bolso da nossa história,
corpo que nunca abracei,
cinza de antiga memória.


E não me digas que é triste
o que nunca aconteceu:
não vês o que não existe,
nem morre o que não nasceu.

sábado, junho 28, 2008

Tédio


Há sinos que tocam na minha cabeça,
para que eu ouça o azul. Mas não quero
este angelus sem fim, e ato as nuvens
brancas do verão com um laço
de treva para as deitar para o lixo,
esperando que uma reciclagem
de metáforas as transforme em verso.
É como se o poema avançasse num
tampo de mesa, e as suas estrofes tivessem
como único limite os rebordos onde pouso
o cotovelo. Ouço-o, por entre o murmúrio
de conversas do café onde espero
que o tempo chegue; e a sua luz
desfaz-se nos meus olhos.
A quem irei contar a minha história? Os
dias sem princípio nem fim? A porta
que deixei encostada, e ninguém
abriu? O sonho que secou nos vidros
da janela? Um coágulo de palavras
na ferida das frases? O licor do desejo
no copo vazio do amor?

sexta-feira, junho 20, 2008

Jogo


Talvez não fosse para ser dito assim,
em conversas breves de longas frases, e nem
o que se diz se ouve como deve ser nem o que é
devia ser dito. Talvez não fosse para pôr
uma adversativa à cabeça, como se o chapéu
não pudesse esconder o pensamento, ou
o que se pensa não coubesse na própria cabeça,
e saísse pelos olhos para que todos o vissem. Mas
o que é dito assim, e não se esconde, tem
a cor desses olhos, é húmido como esses lábios,
tem a brancura da pele que se toca quando
as conversas se acabam, e as longas frases
ficaram pequenas a esta distância em que
as lembro, sem o peso do tempo, sem
a distracção das mãos.

quarta-feira, junho 18, 2008

Ao espelho



E se neste outro rosto se adivinha,
se é ómega o alfa dos seus dedos
e princípio o fim que dele vinha,
se no que segreda diz os seus medos,
e só ela sabe aquilo que já esqueceu,
nenhuma noite cai na cortina do olhar,
nenhum sol se põe no dia que nasceu,
nem aves cantam na tarde a começar.
Um rosto apenas sem nada dizer,
lábios que sabem a boca que os procura,
silêncios fingindo a voz que perdura
quando outra voz parece emudecer.
E é nesse rosto que a vida recomeça,
é nessa voz que é feita de promessa.

terça-feira, junho 17, 2008

Interpretação de um sonho

Talvez não houvesse nada
neste sonho: a margem a descer
para o rio, o bosque de onde
não saía o lobo, uma luz de inverno
a escorrer pelos braços. Mas
havia o céu sem um pássaro,
a distância sem um som,
a corrente parada enquanto
o tempo não passava. E
tirei o sonho de dentro da cabeça
com uma agulha, como se
comesse um caracol.

segunda-feira, junho 16, 2008

Arrumações caseiras

Abro a caixa do poema para descobrir
velhos versos, estrofes que ficaram a meio,
imagens gastas pelo bolor dos anos. Devia
ter deitado tudo para o lixo, no meio
de metáforas sem uso, de aliterações
surdas, de hipérboles furadas como balões
de feira. Mas encontro palavras que ainda
me servem, as que falam de coisas que não
passam, as que trazem um eco de vozes
que voltam a soar aos meus ouvidos, como
se estivessem comigo. E volto a fechá-la,
para não perder o que nunca tive.

domingo, junho 15, 2008

A casa fechada


A casa como se fosse a crisálida,
e os seus habitantes esperando - os seres
do casulo, aprendendo a vida.

Não bato à porta, para
não os perturbar, nem saber
as feições do seu rosto, o som
da sua voz, a articulação
de uma frase sem fim.

Mas o olhar que atravessa
as paredes, como o vidro transparente
da eternidade, adivinha os corpos
em volta da mesa, os brindes
que secaram nos seus copos,
os olhares cúmplices
no viço dos minutos.

E entro pela porta fechada,
juntando-me ao grupo dos que
acordam para a vida.

Poema aforístico

O templo está fechado para quem não
conhece a entrada. Mas as suas portas
são o céu, e as mãos que afastam o vestido
como se abrissem as nuvens
sabem por onde se entra.

sexta-feira, junho 13, 2008

Psique


O mistério que enche a taça
mata-me a sede. Podia dizer, como o outro,
que o único mistério é não haver
mistério; mas quando as tuas mãos são
a própria fonte, e o teu corpo se
confunde com a taça, a sede não se mata
com o mistério deste mistério
que nos mata a sede.

quinta-feira, junho 12, 2008

Greve

Calma, diz o poema ao poeta
que quer fazer uma greve:
as rimas circulam na gaveta,
e o verso é de quem o escreve.

Pode esgotar-se a inspiração,
ou subir na bolsa a métrica,
que as metáforas têm mão
nesta fórmula geométrica.

É redonda a linguagem
no quadrado que elas inventam;
e nasce uma nova imagem
de cada vez que as acorrentam.