A a Z

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Paradoxo ornitológico

Um dia, um homem transformou-se em pássaro e
voou à volta da mulher que esperava que um
pássaro se transformasse em homem.

domingo, janeiro 27, 2008

Perfil

Apenas um rosto contra a luz onde
o contraluz me desvia da luz para
o rosto que num reflexo se projecta.

Em redor desse rosto, os cabelos
descobrem o brilho que sobre a
sombra deita a sua luz de água.

E no rosto onde a luz e a sombra
se juntam, uma boca recita em eco
um verso feito de música e mágoa.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

O mar


São estes versos que te escrevo brancos,
com a brancura da espuma em cada onda nascida.

São estes versos que te escrevo negros,
com o negrume da noite na vaga adormecida.

No branco do verso escrevo a negro o amor
que o mar irá cobrir quando alguém o quiser ler.

No negro do poema escrito no branco do verso
o céu deixará um fundo azul quando a maré descer.

E sob o azul do céu, no branco do verso,
o poema ficará branco e negro com o arco-íris de uma flor.

Limpo da espuma de uma onda que rebentou,
é no mar que se lê, negro e branco, o que é o amor.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Zoologia: a esfinge

Tantas vezes a esfinge chamou o homem
que o homem deixou de a ouvir. «Que me
queres?», dizia-lhe. «Não te sei responder.» Mas
a esfinge voltava a chamá-lo. E o homem
respondia-lhe, como se não a tivesse ouvido. «Não
vale a pena fingir que não a ouço.» A esfinge
só queria que o homem desse por ela; se
não fosse assim, para que é que serve uma
esfinge? Mas o homem já sabia tudo sobre
a esfinge. «Não me perguntes nada», dizia-lhe. «Já
conheço todas as respostas.» E a esfinge
perguntava-lhe de que cor são os olhos da noite,
quantas manchas tem a lua, quem é que se
esconde por trás da chuva? O homem respondia:
«Os olhos são da cor do gato, são manchas
de café, é o vento.» Então, a esfinge saltava-lhe para
o colo. O homem não lhe tocava, com medo
que ela se assanhasse. E ela ronronava, como
se o homem lhe tivesse tirado todas as dúvidas.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Zoologia: a cabra

Uma cabra pensa:
o campo é para comer.

Pouco importa que o campo
esteja verde ou seco:
o campo é para comer.

No meio de rochas
ou de muros:
o campo é para comer.

Por isso, quando te servirem
queijo de cabra, irás sentir na boca
o sabor do campo
que a cabra comeu.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

A mão na porta

A mão que foi de alguém
espera que alguém lhe pegue.

Se ninguém lhe pegar
ninguém há-de entrar.

Há mãos que só servem
para que uma porta se abra.

E quando a mão fica caída,
não há entrada nem saída.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Zoologia: a borboleta de nabokov

Não sei se a rede que nabokov usava
para caçar borboletas era a mesma
que usava para caçar lolitas.

Mas entre lolitas e borboletas, nabokov
caçava as cores do campo onde as lolitas
perseguiam as borboletas.

E na colecção de borboletas de nabokov
ainda se podem ver todas as cores do campo,
e uma lolita esquecida.

sábado, janeiro 12, 2008

Zoologia: o pássaro

Há pássaros que não sabem o que fazer
quando pousam numa fronteira.

Podiam voar se quisessem,
passando qualquer barreira.

Se ficam parados, sem voar,
é porque as nuvens os não merecem.

Anjos a pedirem-lhes passaporte,
com um relâmpago para o carimbar.

Um sul podia ser o seu norte,
se o quisessem atravessar.

Mas o pássaro fica parado,
sem cair para nenhum lado.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Viagem marítima

Havia um caminho mais limpo para
dentro da manhã. Os sonhos rebentavam
numa auréola de espumas. A noite resolvia-se
na maré de pálpebras que subia pelas
dunas de um corpo. A luz manchava
de branco as sombras.

Um coração batia sob o pulso
do verso. Que temporais amainava
com o leme do canto?

Há horas em que o céu
e a terra se confundem. Podemos
tocar as nuvens; e o chão abre-se
num campo de estrelas. A tua mão
puxa-me para esse limite. Viajo
até ele no barco da tua voz.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Crepúsculo

E sigo um caminho de estátuas partidas, por
entre flocos de pássaros que caem do inverno e
a neve no topo das montanhas que os deuses
desprezaram.

Escrevo nos pedestais um epitáfio branco para
que um dia os peregrinos se detenham e leiam: «Aqui
esteve aquele que que venceu o amor quando
o amor o venceu.»

Numa berma de lama e erva arrancada ficou
a memória dessas tardes.

domingo, janeiro 06, 2008

Eclosão diurna

Que segredos escondem os teus olhos
fechados? O sonho não faz parte da realidade em
que te encontras; e por isso a escondes quando
pensas na pura contradição de que falou o Rilke,
vendo nas pálpebras que se fecham a queda
das pétalas de uma rosa que o outono ameaça. Mas
se saíres da noite, e avançares na luz dourada
de um dia que nasce, o teu corpo confundir-se-á
com o da natureza que emerge da geada, e
os teus braços despojar-se-ão do musgo da treva
para se erguerem ao sol, e saudarem o vento
que a manhã desperta.

Dia de reis





Trago-te nas mãos uma bolsa de luz
para que a acendas quando a noite chegar.

Trago-te no saco a margem de um rio
para que nela descanses num dia de calor.

Trago-te na boca uma chama de palavras
para te aqueceres no frio do Inverno.

E todas as flores do mundo
na primavera que irá chegar.

sábado, janeiro 05, 2008

A um sorriso


A minha dúvida é olhar-te, ou
olhar para a tua imagem no espelho; e não sei
se escolherei a mulher real, que pousa
os braços no móvel enquanto espera que
lhe tirem o retrato, ou essa que o espelho
reflecte, e ali irá ficar, muito depois
de te ires embora, cansada da pose a
que o fotógrafo te obrigou. É que a mulher
do espelho é aquela que habita um espaço
que não tem tempo nem mundo; a que vive
enquanto a luz o permitir; e quando a sala
ficar às escuras, mantém a vigília de uma
eterna insónia. E vejo-te em todos os espelhos,
a sombra de quem por eles passou, para
que o efémero permaneça, e o teu sorriso
não desapareça.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Pescoço de opala

Ao escrever sobre o teu pescoço,
pergunto se há uma fórmula que o possa
descrever sem a corda de um erro. E
encontro uma opalescência mineral para
o envolver. Num colar translúcido
como coral, e com a cor que o decora, ponho
o teu pescoço no centro do poema. Faço
cair as palavras como a guilhotina
que o atravessa sem cortar sílabas
nem cabeça; e levanto à multidão
o teu pescoço, sem que o saibas, de costas
para mim, pensando que chegou a altura
de o cobrir com um lenço.