A a Z

quinta-feira, junho 29, 2006

Mulher com flor

Léon Gimpel

Ponho o silêncio no lugar
da flor; e a haste que daí cresce
tem o verde que lhe dás
quando o teu braço
a prolonga.

Mas se a flor pousa
nos teus lábios, e o teu
riso a desperta, batem
as suas pétalas como asas
de borboleta.

E és tu que do teu leito
te soltas, descobrindo os seios
à luz da tarde

quarta-feira, junho 28, 2006

Índice

Um lírio do vale
Jane com uma boneca japonesa
Um retrato de mulher com vestido branco
Ninfas de água
Retrato de Z. Minderowa
A banhista dita banhista Valpinçon
Acordar
A mulher do espelho
Modelo no atelier do artista
Retrato de Maria
Depois do pequeno almoço
O deitar de Safo
Rapariga lendo
As irmãs Wyndham
Cassandra
O repouso do modelo
Jovem mulher de casaco vermelho
Estudo de mulher
Arrufos
Retrato de A.P. Ostroumowa-Lebedewa
Diz-me tudo
O espelho
Rosa
Um doce bilhete
Banhista de costas limpando-se com toalha
Nu
Dina com lenço
No atelier
Sinfonia em branco
Mulher c. 1880
Autoretrato
Mulher
A mulher das flores
Mulher numa cadeira grega (Penélope)
No verão (estudo)
Fonte
A rapariga do retrato
Sónia de meias brancas
Ao cair da noite
A rapariga das gaivotas
Mulher com papagaio
Laranja
Ouvindo o violino
Repouso
Anatomia
Longe
À varanda
Primavera
Ouvindo o pássaro
Madalena
Outra Madalena
Mulher com chapéu de chuva
Olhando-se
Matisse e a odalisca
Debaixo das bétulas
O vergel (variante: Proserpina)
A caminho da feira
A arte da melancolia
Acordar
À maneira de Eurídice
Odalisca
Regresso do baile
Elisabeth Siddal
Pausa
Trânsito
Ninfa apanhada no bosque
Distância
O banho
Solidão
Anna Risi
A bela irlandesa
Lume
Uma imagem
Lilith
Aparição
Dia nascente
Retrato de uma jovem
Ouvindo Schumann
Estudo académico
Elogio da leitura
Sede
Melancolia branca
Nascimento de Vénus
Preguiça
Epigrama
Vénus
Variação sobre a toilete da Vénus de Velázquez
Vénus ao espelho
Musa
Madalena
Pecado
Rosto
A chávena de chá
O que aprendi contigo
Sobreimpressão
Bailado
Nostalgia
A morte de Cleópatra
Ausência
Nu de costas
O Verão
Interior com figura
Estudo em rosa
Repouso

Repouso

Paul Haviland

Devias ter um nome, para que to pudesse
dizer ao ouvido, quando acordasses, e o azul
da manhã te limpasse do rosto a sua cor
nocturna. Veria a luz passar por
sobre os teus cabelos, e falar-te-ia das ilhas
que nos esperam, num oceano sem nome;
e dar-me-ias a tua mão, num instante longo
como a eternidade, enquanto procuro
o teu nome para te chamar, e ouvir-te
dizer-me que acordaste para o dia
sem fim que tem o teu nome.

terça-feira, junho 27, 2006

Estudo em rosa

Modeste Huys
Afasto-me de um trânsito de cores vivas,
e procuro a rosa pálida, entre a magnólia
e a buganvília, para a pôr no lugar
da rosácea, centro e círculo do movimento
que a leva ao céu onde a nuvem do poente
a acolhe, no rosado instante do botão,
como se dele não nascesse senão a rosa
que só é rosa na rosa a que a rosa deu cor.

Interior com figura

Clarence Hudson White
É no lugar da janela que o quadro ganha
outra dimensão, não sei se por causa da luz que
entra na sala, através da cortina, se pela
posição do braço, caído ao longo do corpo, mas
mantendo um pouco de energia - a suficiente
para manter o equilíbrio. Mas não estou
a falar do modo como ela está sentada
na cadeira; o que daqui ressalta, antes
pelo contrário, é a convicção do olhar,
fixo no dia que se adivinha do outro lado
da janela, e que a puxa para o exterior,
como se ela estivesse entre o dentro e o fora,
numa indecisão que só o espírito resolve,
quando pensa nas plantas secas nos vasos,
e sonha com a primavera que se anuncia. Por
isso, espero que a imagem se anime,
de súbito, e a figura da mulher sentada
se dirija para a porta, e saia para o quintal
da casa, onde flores e arbustos se confundem,
por entre a erva que ninguém cortou,
ao contrário da sua vida.

O Verão

Gustave van de Woestijne
No entanto, a mesa nem sempre esteve vazia;
e na grande toalha do Verão as criadas dispunham
os pratos e os talheres, à espera que os convidados
se sentassem para os longos almoços em que
as conversas se transformavam na única forma
de passar o dia, como se o sol não convidasse
para o campo. Mas era como se não existisse
outra vida; e só quando a tarde começava
a impor as suas sombras os convivas começavam
a sair, um atrás do outro, levando não se sabe
o quê - pedaços de frases, memórias de olhares,
bilhetes em que se jurava o que nunca se iria
cumprir. Só tu ficavas, no teu lugar, sem ninguém
para te dizer o que desejavas ouvir, e com
todas as promessas guardadas num bolso
de silêncio. Porém, as uvas continuaram
sobre a mesa; e o sabor dos teus lábios
permanece no seu mosto, quando levo o copo
à boca, e a tua imagem fermenta no vinho do ocaso.

Nu de costas


Théo Van Rysselberghe
Desenho o amor como um caule
que a luz percorre numa lentidão líquida,
esquecendo o leito em que pousa, leve,
o seu corpo.
E se o brilho da tarde o colhe
do ramo a que os seus braços se agarram,
flutua, como fruto de futura colheita
que o desejo alimenta.
Ave imponderável, só os olhos
procuram a terra em que outrora
sonhou, no centro da clareira
em que o amor a deitou.

segunda-feira, junho 26, 2006

Ausência

O fundamento das palavras perde-se
na lava dos lábios, quando o fogo do amor
os incendeia. Rios que se enrolam
nos ombros da madrugada, ou simples
regatos que correm por entre os dedos -
vêm ao encontro dos amantes,
para que os seus olhos cansados da noite
os sigam na planície da pele,
em busca de um estuário de sensações.

Porém, as flores presas no cabelo,
sugerindo um movimento de hera, dão-te
uma hesitação de outono, como se o tempo
te cobrisse com a sua sombra. Só o que pensas
te empresta uma realidade - mas não sei o que
pensas. E se o diadema do dia te ilumina
o rosto, e os teus olhos encontram os meus,
espero que me respondas: A que armário
de esquecimento foste buscar o teu silêncio?

domingo, junho 25, 2006

A morte de Cleópatra


Para que serve a poesia?, perguntas. Uma das
respostas está na forma como o destino do humano
se projecta na necessidade de absoluto que surge
num rosto, para além das circunstâncias, quando
a palidez imprime o vazio do tempo. A dúvida
transforma-se na única certeza possível,
envolvendo os olhos marcados pela dor;
e o corpo que se abandona ao fim ganha
raízes no chão efémero de uma substância
de palavras, como se lhe pudéssemos oferecer
o sacrifício da alma que nenhum deus
aceitou. No entanto, esta árvore cresce;
e os seus ramos estéreis bebem o ar
da memória que alimenta uma seiva
de silêncio, entregando à noite
as suas flores de sombra.

sábado, junho 24, 2006

Nostalgia

Onde colheste estas flores?
Que margem de rio te abriu o seio,
pétala a pétala, para que o perfume
da primavera se espalhasse
pelo campo? Ainda o respiro
- como se estivesses ao meu lado,
e o amor habitasse
os teus olhos...

quinta-feira, junho 22, 2006

Bailado

Mata Hari
Olho-te no fundo desse poço
para que me empurras; e um reflexo de luz
faz com que estremeças, numa sugestão de vertigem,
derrubando com esse movimento todas as manchas
que te envolvem.
Às vezes, parecia-me que chegavas, de noite,
trazendo nos braços a seda do inferno. E a lâmpada
que acendia apagava-te, deixando apenas
um esboço de sombra na parede, perseguindo
o anjo da noite.
E os teus seios abrigavam-me da treva,
como as rosas lívidas do outono.

Sobreimpressão

Jean Moral
Tenho de começar a pensar na paisagem que
nasce dos olhos, quando se dirigem para esse ponto vago
em que os pássaros parecem voar dentro deles,
e não no próprio céu a que pertencem. O vento
nos cabelos, porém, afasta-me deste princípio
lógico; e sigo a sua direcção, que acaba nos dedos
que contam a distância a que estamos,
a partir de uma tabuada que não tem fim. E
acendo um cigarro, para que o fumo envolva
o rosto num pressentimento de vida,
fazendo com as palavras pareçam sair
dos lábios que, no entanto, permanecem
fechados. E este perfil é tudo o que me resta
para imaginar o corpo amado, como se
ele fosse uma frase - feita a partir de
fragmentos, alinhados na mesa da estrofe,
numa atmosfera de silêncio.

quarta-feira, junho 21, 2006

O que aprendi contigo

O desencontro das tardes, uma febre
de profecia, a sede de sal dos lábios
sequiosos, a ferida tranquila de um espinho
de rosa, o amor que acontece, as águas da noite
quando os rios se calam, o olhar vigilante
de uma lua sem céu.

Às vezes, ouvia-te no corredor
sem fim, como se os passos da sombra
pudessem ecoar na minha cabeça; e
abria-te a porta, para que uma ausência
branca entrasse no quarto em que te
esperava, para um sempre que nunca foi.

E sentavas-te na cadeira do fundo,
atrás de mim, pedindo-me que te olhasse
no espelho obscuro da memória. Mas
não me voltei, para não ver o lugar vazio
que deixaste na casa solitária do inverno,
sob o véu nupcial que as aranhas teceram.

terça-feira, junho 20, 2006

A chávena de chá

André Derain

Não sei se já puseste o açúcar; nem se
o teu espírito se perdeu no fumo que saía,
há pouco, desse bule onde o chá assenta
com a tarde. Falámos de regiões antigas;
e o livro que abriste, ao acaso, indica
esses mapas de províncias onde nunca
nos iremos perder. Mas os teus olhos
que traçam a única fronteira desta
viagem, dão-me o passaporte de que
preciso. Atravessarei a terra de ninguém
da tua tristeza; e cortarei a erva melancólica
que cresce nas tuas palavras, para que
um outro campo se ilumine sob o sol
da manhã. Tu, porém, esperas que
o chá arrefeça; e pensas na tua vida
que se tornou uma sala de espera,
ouvindo bater o coração do mundo.

segunda-feira, junho 19, 2006

Rosto



E de súbito o teu rosto que nasce
da pedra, desenhado com o lápis do sol,
amaciado pelos ramos do tempo,
doce como a amêndoa solta da árvore,
suspenso de uma brancura de orvalho.

Sigo as suas linhas com os dedos
da transparência, como se pudesse
apanhar de um espaço de corola
o pólen da distância, e entro nos teus olhos
para uma vindima de rosas.

Quando irei beber esse vinho? Mas
ergo a taça do teu corpo na mesa
da estrofe, e saúdo a vida
que nasce de uma memória
obscura, por entre a nudez
das estações.

quarta-feira, junho 14, 2006

Pecado


Nas aldeias antigas, as mulheres do campo
esperavam o princípio da tarde para correrem
no meio das searas, em busca de uma clareira
onde se pudessem despir, para que o sol,
descendo à terra, as pudesse possuir. O fogo
que nascia dos seus lábios pegava-se à erva,
e durante um instante toda a seara ardia,
sem fogo nem fumo, apenas com o desejo
que se soltava da sua boca, e ia apagar o sol,
nas tardes em que a noite caía mais cedo.

Espreitei essas mulheres quando voltavam
das searas, e nos seus olhos traziam um cansaço
de amor. Acompanhei-as às suas casas, e vi-as
deitarem-se contra a parede, olhando os seus
rostos no espelho que as velhas seguravam.
Tinham no rosto um princípio de melancolia;
mas diziam-me que a noite resolveria tudo,
quando a sua cabeça se enchesse de sonhos.
«Que queres daqui?» perguntavam-me. E eu
pedia-lhes que me guardassem a imagem
do espelho, em que a eternidade se dissipa,
como o seu sorriso no rescaldo do prazer.

terça-feira, junho 13, 2006

Madalena

Julio Romero de Torres
Não te demores a olhar o tempo
que passa. A vida não ficará à tua
espera; e o sol, que ainda mantém
o seu brilho, em breve declinará,
fazendo com que a sombra
te envolva. Nos teus olhos,
porém, a noite já tem o seu lugar;
e entro neles, descobrindo
a melancolia que os ilumina.

Musa

Julio Romero de Torres
Entre o teu corpo e a paisagem vejo abrir-se
a distância que me leva de mim a ti. E se
entre mim e ti outra distância não houvesse,
limito-me a contar os passos que dou para
que a conta não acabe. Tu, porém, olhas-me
neste fundo de tabuada, e deixas que o teu
braço seja a régua onde a distância se mede
pelo abraço que falta. Então, acerto a conta
pelo triângulo que o outro braço forma,
quando seguras a cabeça, e fecho nesse ângulo
a soma dos corpos que totalizam o amor.

Vénus ao espelho

Velázquez

Vejo as duas vidas que tu olhas; e
das duas não sei qual escolher. Tiro-te
do espelho; e à minha frente és
o reflexo que imagino, num pedaço
de realidade. Mas se tento tocar-te,
é o vidro que me impede de passar
para onde estás, e de onde me chamas,
num eco de desejo.

Pudesse eu partir o espelho,
e ver em cada estilhaço os fragmentos
de vida em que nos encontrámos! Ou
colar ao vidro a minha boca, e encontrar
húmidos os teus lábios! Porém,
nada desvia a tua atenção; e
no rosto que olhas vês o rosto
que o vê, pensando em todos aqueles
que te hão-de ver.

segunda-feira, junho 12, 2006

Variação sobre a toilete da Vénus de Velázquez

A. Noyer

Pelo meu lado, pude ver como a sombra
que abraça a sombra que se volta no espelho,
como num leito, se oferece de lado para
que as flores que crescem do canto não
sequem no seu canto.

E o cortinado que se vê ao fundo, dando
para a janela que não se vê, é a janela
de onde se vê o peito que respira o ar
do quarto onde o ar que respira abafa
o que me inspira.

Abro a janela do espelho em que a vejo,
e vejo que não há ninguém do lado de fora,
onde se estende o cortinado da noite
que esconde o seu corpo de quem passa,
sem saber que a abraça.

Vénus

Bouguereau

Puseram-lhe o corpo numa concha de fogo.
As algas envolveram-na com a mortalha
negra do oceano. A combustão fez-se
na cama de sonho em que passou a noite.

Um dia, um pescador encheu o seu balde
com as conchas apanhadas na praia, num intervalo
da maré. Pedi-lhe que não as abrisse; mas
ele disse-me que era tarde para evitar a refeição.

Abrimos as conchas, uma a uma; e o corpo
primaveril renasceu de dentro da água, como se
a vida ainda o contaminasse, e um sulco de alga
não cortasse os seios em que tantos lábios pousaram.

Epigrama

Abro-te a porta do poema; e tu
espreitas para dentro da estrofe, onde
um espelho te espera.

domingo, junho 11, 2006

Preguiça


Ramon Casas
Sou o chão para onde olhas
quando, na cama, um breve cansaço
te enche de esquecimento; e a incerteza
do que somos faz-me olhar para ti,
e ver o céu onde uma nuvem de linho
se desfaz, para que o teu corpo
ocupe todo o horizonte.

E de novo sorris, voltando
a pôr os teus braços na mesa do amor,
para continuar a refeição que a vida
nos oferece: a mim, o chão onde pousas
os pés, como se aprendesses a andar;
e a ti, o céu para onde me dirijo,
aprendendo a voar.

sábado, junho 10, 2006

Nascimento de Vénus

Alexandre Cabanel

A página pode estar vazia, como este mar que
tenho pela frente; pode obrigar-me a ficar
em terra, esperando que o céu se volte a abrir;
ou pode fechar-se, com o vento, impedindo-me
de escrever. Mas se aproveitar o intervalo
da maré, o instante único em que uma palavra
se deixa ver no horizonte, como a vela desejada
pelo náufrago, e usar a matéria prima
que emerge da onda empurrada pelo desejo
de um deus cego, o poema seguirá o rumo
dos cabelos que se derramam na espuma
do amor. Descobrirei o teu rosto, ainda
encoberto pela palidez da madrugada; e
atravessarei o átrio dos teus seios, ouvindo
a música de uma respiração de anjos
num eco de abóbada. E se não acordares,
espreitarei o fundo das tuas pálpebras,
onde escondes as imagens da noite; e
colhê-las-ei, uma a uma, como os frutos
do verão que o teu corpo anuncia.

Melancolia branca

Alexandre Cabanel
Afasto a nuvem que pousou na tua cabeça,
e vejo-a voar para o horizonte onde alguém
a confundirá com uma ilha. E entro no mar
do teu corpo, sem saber para onde me levará
a navegação que me ofereces. Mas a névoa
que habita os teus olhos - que vento litoral
a dissipará? Que aves negras nascerão de
dentro dela, com as asas suspensas numa
dúvida de rumo? Fecho a janela da alma,
e guardo-te na obscuridade de mim,
saboreando o desejo que a memória limpou
do esquecimento. E sais de dentro dos
lençóis da noite, com a promessa do teu
corpo na bandeja do dia.

sexta-feira, junho 09, 2006

Sede

Amaury-Duval

Procuro os teus lábios numa
vertigem pálida; a verdade é que
os encontro na água fresca
de um rio de palavras,
que subo por entre
o murmúrio das margens. E
esvazio o copo do teu amor,
para que o voltes a encher,
sabendo que este rio
não pára.

quinta-feira, junho 08, 2006

Elogio da leitura

Theodore Roussel

Sigo o movimento dos teus olhos
no livro que seguras,
e vais descobrindo ao mesmo tempo
que eu. O que sentes? Que
sonhos inundam a tua cabeça, quando
uma palavra ocupa toda a página, e te
obriga a parar a meio de um
um parágrafo? Ou de que te lembras,
quando voltas atrás, e me fazes reler
a frase por onde eu passara, sem ter
visto o que me dizes? Explicas-me
que este livro é a tua vida; mas
a tua vida também é um livro, digo-te,
quando o deixas cair para o chão,
e me deixas ler pelas linhas da tua mão.

quarta-feira, junho 07, 2006

Estudo académico

John Watson

Gostei sempre deste fragmento de perfil em
que a luz da janela, que as cortinas filtram,
se recorta, deixando adivinhar o resto de
um corpo despido pela manhã. Não há nenhum
equívoco nesta pele; e a sua brancura invade
o espaço, como se fosse a única realidade
que o olhar tem à sua disposição para compor
a paisagem da vida. No entanto, peço-lhe
que se volte; e espero que o seu rosto me fixe,
com a exactidão que trouxe da noite em
que o amor ficou desenhado; e quando me
olha, tudo volta a ser como da primeira
vez em que a vi, e o seu rosto me esvaziou
de segredos, quando o poema a iluminou.

terça-feira, junho 06, 2006

Ouvindo Schumann

Fernand Khnopff (1858-1921)

Na rua, com o calor, não se pode estar; e
dentro de casa o piano martela a cabeça, trazendo
à superfície os piores sentimentos. Porém, escolho
a melancolia: e vejo a alma magoada sair
do espelho da parede e sentar-se no meio
da sala, segurando a cabeça entre as mãos
para que a falta de certezas não a destrua.

E a música insiste: uma peça romântica,
onde é visível a noção de um sentido que desenha
todo o campo abstracto do sofrimento. E ao fechar
os olhos, quem a ouve imagina o gesto preciso
de cada um dos dedos sobre as teclas,
procurando chegar ao fim, mas sabendo que
esse fim não é mais do que o princípio.

«Sim, digo-te, vem comigo até ao campo,
e escolhe a árvore sem raízes - a que nos irá
abrigar, sob o silêncio dos seus ramos.» Devagar,
deitas a melancolia para o chão, e segues-me,
confundindo o som do piano com um ritmo
de passos que, por fim, a terra engolirá.

segunda-feira, junho 05, 2006

Retrato de uma jovem

Bernardino Luini (1485-1532)

É apenas a forma que tens de me olhar,
sem que eu dê por isso, como se entre mim
e ti o espaço não contasse; ou é
o risco no cabelo, antes de chegar à trança,
indicando o caminho para o sonho
em que nos abraçamos; ou é o teu sorriso,
num esboço de algo que se perdeu
entre um e outro café, por entre
perguntas e conversas; ou é o fundo
dos teus olhos em que adivinho
a noite, e tu me dizes que
o dia está para nascer; ou
são as tuas pálpebras, em que me
escondes a inquietação com que
fechas os olhos, quando as certezas
do coração te ferem; ou és tu,
no puro instante em que te vejo,
e só tu existes.

Dia nascente


Lawrence Alma-Tadema (1836-1912)

Ao comparar as flores douradas do sol
com um fruto alucinado, de grainhas de fogo
e polpa de pele, encontro a imagem
da mulher que acorda, lançando para o céu
um olhar que só os deuses recebem.

Neste exercício retórico, abraço o sentimento
da eternidade que ela me dá, por instantes, como
se o seu rosto permanecesse na quietude
que os sonhos transportam, quando a noite
não os enche com a sua nuvem de ocaso.

E levo comigo estas sensações, como um ramo
abstracto que a água do tempo irá alimentar,
para que os lábios que a mulher entreabre
sejam a fonte de onde irá nascer o sumo
que embriaga e alimenta a vida

Aparição

Herbert Draper

Não é no horizonte que fica para além do
horizonte, nem em tudo o que adivinho no fundo
dos teus olhos, que o poema se inscreve. O
que é infinito não tem expressão através
de palavras, e o que o teu silêncio
me diz não se pode traduzir neste verso
que dobro para que o teu corpo me surja,
do outro lado da estrofe, como se
houvesse uma outra música no instante
em que dois olhares se cruzam, para
lá do tempo e do espaço de cada um. E
é ao ouvir o que me dizes, por entre
um murmúrio de regato onde se reflecte
o bater de asas do anjo que rasgou
o azul, que sinto a tua presença, como
se a tua mão pousasse no meu ombro e me
puxasse para ti.

domingo, junho 04, 2006

Lilith

John Collier (1850-1934)

O que a faz viver? Pensa?
Ou sonha? Os olhos demoram-se
numa indecisão entre acordar
e adormecer; e sem os fechar,
é como se não visse nada,
para além dela. Mas
uma sombra enrola-se à volta
do seu pescoço, num abraço
de serpente; e os lábios
abrem-se num sorriso
leve, que nos prende,
com o veneno invisível
do amor.

Uma imagem


Evelyn de Morgan (1855-1919)

Um rosto é feito de acordo com uma ciência,
que não é exacta nem dura como a que se estuda
nas escolas. A sua forma é feita de tempo,
e nos seus traços se moldam os gestos
de que uma vida é feita. Por vezes, há palavras
que nascem da cor que o acompanha, de manhã,
quando o sol o envolve; de outras vezes,
podemos ver o silêncio que se imprime
em volta dos olhos, quando a noite deixa
marcada a sua sombra. E no rosto em que leio
a matéria da primavera, soletrando cada sílaba
com a sua música de aves despertas,
descubro a imagem que me deixaste, uma tarde,
quando as aparências se desfizeram
sobre a mesa, e as tuas mãos se tornaram
a única realidade do mundo.

sábado, junho 03, 2006

Lume

Frederick Sandys (1829-1904)

Acordei com um anjo na cabeça. Batia
as asas para sair de dentro de mim; e
ia deixando cair as suas penas,
enquanto procurava uma saída.

Quando se cansou, e se encostou à
minha alma, falei-lhe: «Por que não
ficas comigo?» E não me respondeu,
como se não me tivesse ouvido.

Depois, começou a arder; e
fiquei com o fogo dos seus cabelos
na minha memória, como se fossem
a resposta à pergunta que lhe fiz.

sexta-feira, junho 02, 2006

A bela irlandesa

Gustave Courbet

A construção da beleza não é difícil,
quando o objecto se apresenta aos olhos de quem
o vê com a exactidão dos seus traços,
as linhas certas da memória, e um desfiar
de impressões por cada poro da sua pele. Por
exemplo, os dedos em que os cabelos
passam numa displicência de gesto,
enquanto a outra mão segura o cabo do espelho,
trazem consigo o oceano em que os sentidos
se perderam, numa procura de enseadas
e corais; e, noutro exemplo,
o olhar que segue a direcção da imagem, e
nos arrasta com a indicação segura
de que o caminho é este, sem desvios
nem demoras.

O que me distrai deste sonho, porém,
é a exigência do próprio poema. Vou somando
as palavras às palavras, como se através
do verso que elas formam o corpo da beleza
me surgisse, à transparência da música,
saído do espelho em que o rosto
se contempla. E este exercício ocupa-me,
enquanto ouço o tempo passar, trazendo
até mim o tempo deste instante, preso
aos dedos que agora separo, um a um,
para ver o que escondem.

Anna Risi

Lord Frederic Leighton (1830-1896)

Lembro uma respiração apressada,
uns olhos que se fecham quando o céu se abre,
penas caídas numa corrente de palavras,
um bater de asas num erguer de braços,
o sol posto num fechar de pálpebras,
e o sol que nasce num abrir de olhos;

os cabelos soltos nos ombros
em ondas de um mar de setembro,
os lábios que suspendem o murmúrio
à passagem de um rio sem margem,
o riso que se espera e sonha
na boca onde a tarde perdura;

lembro o que é tão vivo
que já a vida o levou:
mão pousada e leve
no ramo que a ave deixou
ao ver, tão breve,
o amor que ali ficou.

quinta-feira, junho 01, 2006

Solidão


Irei bater-lhe à porta; e se não me abrir,
repetirei o abecedário das suas mãos, deixando
em cada um dos dedos a cor das vogais que
os seus lábios me ensinaram.

Falar-lhe-ei ao ouvido; e se não me ouvir
farei com que este segredo lhe escorra pelos
ombros, como a lágrima obscura da lua
que ilumina o seu rosto.

Mostrar-lhe-ei o caminho; e se não o vir,
fá-lo-ei sozinho, ouvindo os seus passos atrás
de mim, como se me seguisse, guiando-se
pelas vogais que espalhámos pelo campo.

O banho



Diz-me: essa nuvem que se atravessa
no teu rosto, que vento a empurra? De
onde vem a tristeza que passa por ti,
e faz murchar as rosas que os teus
dedos ainda prendem? Mas deixa que
eu te fale; e acordar-te-ei, para
que o desejo te vista com o fogo
solto de uma constelação de antigos
crepúsculos. Então, olhar-me-ás
como se nunca nos tivéssemos visto;
e pedir-te-ei que desfolhes a tarde,
como um livro, para me ensinares
a ler pelas páginas do teu amor.